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O precariado está a passar por aqui
Em Janeiro de 2008, foi entregue na Assembleia da República uma petição subscrita por mais de 5000 pessoas, solicitando a neutralização dos ‘falsos' recibos verdes. Esta petição visava impulsionar a discussão pública sobre a utilização indevida de recibos verdes bem como forçar a Assembleia de República a reflectir sobre este assunto.
Alguns meses depois, José Sócrates referiu-se aos recibos verdes como sendo uma ‘injustiça gritante" e "um exagero que tem de acabar", motivo pelo qual seriam alvo de preocupação do Governo. Sabíamos que eram apenas palavras, tal como se constatou quando o PS recusou a proposta do BE que visava a integração dos precários/as da Administração Pública, mas verificou-se que os trabalhadores de recibos verde começavam a ter alguma importância na agenda política.
Movimentos como o FERVE ou os Precários Inflexíveis começaram a adquirir um estatuto de representatividade que não possuem formalmente; são percepcionados como mandatários de determinadas realidades laborais e as suas opiniões são requisitadas, muitas vezes em detrimento das estruturas formais. No entanto, o FERVE, por exemplo, é um grupo sem liderança, sem sede, sem funcionários, sem sócios e sem personalidade jurídica, cuja interface se materializa num endereço de correio electrónico, numa lista de contactos e num blogue na Internet.
Este acesso mediático possibilitou a denúncia de casos como as Actividades Extra-Curriculares ou os Centros Novas Oportunidades, além de ter permitido levar o debate sobre os ‘falsos' recibos verdes a um maior número de pessoas, o que se concretizou com o incremento de trabalhos jornalísticos sobre precariedade, dirigidos a diversos públicos-alvo.
Em Dezembro, o Ministério das Finanças aplicou multas aos trabalhadores a recibo verde que cobram IVA e que não haviam procedido à entrega da declaração anual do IVA.
Esta situação, denunciada pelo FERVE no dia 11 de Dezembro, rapidamente deu origem a uma união de trabalhadores/as que encontraram no blogue um espaço para partilha da sua situação mas, acima de tudo, um campo para a acção que passou pelo pagamento de multas em moedas, pela solicitação de livros de reclamações e pelo envio de mensagens de correio electrónico.
Pressionado pelos partidos políticos, pelos/as cidadãos/ãs e pela comunicação social, o Ministério da Finanças recuou no dia 15 de Dezembro, anulando as multas e afirmando que a não entrega se tinha ficado a dever a "desconhecimento/negligência".
Assim, se, por um lado 2008 se fez de algumas vitórias para o precariado, este foi também o ano em que o Partido Socialista aprovou um Código do Trabalho que vem legitimar a utilização dos recibos verdes, propondo o pagamento de 5% da Segurança Social por parte da entidade contratante, entre muitos outros atropelos aos direitos dos trabalhadores/as.
O quadro de trabalhadores/as da Autoridade para as Condições de Trabalho continua a não estar sequer pela metade e permanece mais difícil denunciar que um cozinheiro trabalha doze horas por dia do que denunciar que este mesmo cozinheiro utiliza colheres de pau.
Ao longo deste ano, o Ministro do Trabalho, Vieira da Silva, referiu diversas vezes que o Governo cumpriria com a sua parte, no que concerne à regularização dos ‘falsos' recibos verdes na Administração Pública mas constata-se que os concursos para integração de precários foram quase inexistentes. O conceito do Governo de ‘cumprir a sua parte' está a concretizar-se, como suspeitávamos, na não renovação das prestações de serviços, na solicitação aos/às trabalhadores/as que se constituam como empresas para poderem continuar a desempenhar as mesmas funções ou na contratação externa de serviços.
Assim, há ainda um longo e árduo caminho a percorrer na luta contra a precariedade. Uma luta a ser travada pelos recibos verdes, pelos contratados a prazo, por estagiários, por bolseiros de investigação científica, por intermitentes do espectáculo e, a bem da verdade, por todos nós.
É necessário alterar o paradigma que começa a instalar-se segundo o qual é normal nos primeiros anos de trabalho sejam precários.
É necessário tornar a luta pelos direitos laborais apelativa a jovens e a adultos.
É necessário desconstruir a ideia de que é ‘cool' mudar muitas vezes de emprego e que isto da estabilidade é coisa de velhos.
Porque, essencialmente, é necessário que tenhamos jovens e adultos com capacidade crítica e de tomada de decisão. Jovens e adultos que decidem conscientemente mudar vinte vezes de emprego, de casa, de cidade ou de namorado/a, mas que o fazem porque querem, e não porque são obrigados a tal ou porque lhes é vendida a ideia de que isso é que é ‘cool'.
Por fim, é necessário não esquecermos a nossa história, sob pena de voltarmos a cometer os erros do passado. Há dias, o Parlamento Europeu rejeitou, felizmente, uma proposta que pretendia instituir como possível uma jornada semanal de trabalho de 65 horas.
Será importante reflectir sobre isto: quantas pessoas saberão porque motivo se celebra o Dia do Trabalhador no dia 1 de Maio?
Cristina Andrade, psicóloga, activista do Ferve.
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