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Outros lados da “Escola a tempo inteiro”

"Todas as crianças estão a aprender inglês". Esta frase, num dos outdoors da campanha do Partido Socialista para as últimas eleições legislativas, ilustra bem o lugar central que as Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC) tiveram e têm na propaganda do PS e do Governo.

A "Escola a tempo inteiro", no slogan de Sócrates, é, no entanto, bem mais do que possibilitar o contacto com a língua inglesa desde o 1º ciclo - até porque outras "actividades" são desenvolvidas, como as educação física ou as expressões plástica e musical. Sobretudo, trata-se de garantir a ocupação das crianças no espaço escolar, poupando as famílias aos custos duma necessidade que pesa nos orçamentos, cada vez mais emagrecidos pelas dificuldades. Mais do que um qualquer "enriquecimento curricular", as AEC são, antes de mais, um alívio para milhares de famílias, que vêem os horários de trabalho alargar e os rendimentos diminuir. Nos moldes actuais, está aqui o principal interesse deste programa governamental.

Esta configuração das AEC coloca, desde logo, relevantes questões pedagógicas. Grande parte das matérias deveriam integrar o currículo "normal". Ao passarem para uma espécie de aulas de segunda categoria, cometem-se dois erros graves: as "aulas a sério" mantêm um programa empobrecido - nomeadamente do ensino do inglês, que justifica os tais outdoors - e aumenta o tempo de escolarização das crianças. Os currículos deveriam ser ricos e não "enriquecidos", com a consequente desvalorização de matérias fundamentais e um peso excessivo de horas dedicadas à aprendizagem para crianças que, convém lembrar, têm menos de 10 anos. Turmas mais pequenas e pluridocência, combinadas com actividades verdadeiramente lúdicas e extra-curriculares, asseguradas por profissionais com créditos e direitos reconhecidos, seriam uma solução que, infelizmente, não passam pelos planos do Ministério.

Mas há ainda um outro lado das AEC que o Governo não quer mostrar nas suas campanhas. A "Escola a tempo inteiro" é assegurada por milhares de pessoas em todo o país, quase sempre professores e professoras que sobraram da sangria dos concursos, a quem não são reconhecidos quaisquer direitos. O Governo decidiu convenientemente delegar as competências das AEC nas Câmaras Municipais, que, por sua vez, optam quase sempre por subcontratar (os trabalhadores e a própria organização das actividades) a empresas de ocasião, "especializadas" neste novo negócio fácil. O resultado é, na larga maioria dos casos, os falsos recibos verdes, as contratações ilegais, a chantagem, a total falta de condições (materiais, nomeadamente) para desenvolver estas actividades.

Nesta corrente de desresponsabilização, alimentada a dinheiros públicos, todos ganham menos os professores: no final desta cadeia, o dinheiro fica nas autarquias e nas empresas. Nada protege estes milhares de profissionais, tratados massivamente como gente descartável, no seio da Escola pública. Os relatos abundam, um pouco por todo o país, quase sempre encobertos pelo anonimato a que o medo obriga: salários abaixo dos valores legais, tantas vezes pagos com muito atraso, horários arbitrários, contratações selvagens - vale tudo.

Mas o silêncio que encobria esta enorme fraude a nível nacional está a terminar. Apesar das dificuldades e da enorme chantagem que ameaça estes trabalhadores e trabalhadoras, vêm surgindo as primeiras experiências de luta e organização. No Porto, após uma inacreditável contratação numa garagem no início deste ano lectivo, com redução de salários relativamente ao ano anterior e todas as arbitrariedades, os professores responderam denunciando a situação, exigindo contratos de trabalho e condições para exercer a sua actividade, questionando a autarquia e reclamando a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho. Em Lisboa, vários plenários prepararam uma concentração em frente ao Ministério da Educação, que ocorrerá esta semana. Em ambos os casos, foi possível articular a inconformação dos professores, com a disponibilidade dos sindicatos e dos movimentos (de trabalhadores precários e de defesa da escola pública).

Convém sublinhar que nas AEC, em grande medida, se ensaia o futuro da Escola pública. A precariedade docente e a externalização das competências da Escola precisam dum forte combate, sem o qual estes expedientes ameçam generalizar-se: basta constatar que hoje existem já muitos milhares de professores desempregados e contratados a termo. Até por isso a luta dos professores das AEC merece toda a atenção e solidariedade: o fim dos falsos recibos verdes, a contratação justa e sem intermediações, feita directamente pelo Ministério da Educação, tem que ser a garantia mínima na Escola pública - para os professores das Actividades de Enriquecimento Curricular e para todos os profissionais que, hoje ou no futuro, assegurem um sistema de ensino de qualidade, protegendo os direitos das crianças e uma das dimensões mais importantes da democracia.

Sobre o/a autor(a)

Ativista da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
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