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Vamos aos números dos julgamentos por crime de aborto

O incómodo dos defensores do Não é notório sempre que se lhes fala da realidade. Ribeiro e Castro veio "exigir" a retirada de um cartaz que apela a que as pessoas não se abstenham, porque assim permitiriam continuar a pena de prisão para as mulheres. Mas não, dizem os do Não, nenhuma mulher é presa - fraco argumento porque quer contradizer a realidade.

Este argumento revela aliás duas características da campanha do Não. A primeira é que, aparentemente, existiria na sociedade portuguesa um grande consenso contra a injustiça da condenação de mulheres. Mas esse  mesmo consenso já não se estende à necessidade de alterar a lei que ninguém parece querer aplicar. Pelo contrário, o Não insiste em que a penalização de 3 anos de prisão deve continuar no Código Penal. Assim, estaríamos todos de acordo para não aplicar a lei, com a condição de se manter a lei que ninguém quer aplicar. A hipocrisia passaria então, triunfantemente, a ser a regra que define a lei. Não é uma forma de fazer campanha muito impressionante.

Mas a segunda característica da campanha do Não é que não gosta da realidade. Durante algum tempo, argumentava esta campanha que não havia julgamentos. Depois, perante a evidência, tem argumentado que, havendo julgamentos, nenhuma mulher é condenada. Agora acrescenta que, se alguma mulher é condenada, não é a pena de prisão.

Vamos por isso a números. A estatística oficial do Ministério da Justiça é incompleta, porque só apresenta dados sobre alguns distritos (se os casos forem, por ano, menos de 3, então passam a ficar ocultados pelo segredo estatístico). Assim, só é possível saber que, desde o referendo anterior e somente em seis distritos (Lisboa, Porto, Coimbra, Santarém, Faro, Aveiro e Viseu) houve 223 pessoas que foram investigadas por crime de aborto. Dessas, 37 mulheres foram julgadas e 17 foram condenadas - das quais somente nove viram a sua pena ser substituída por multa ou pena suspensa.

Estas centenas de pessoas foram investigadas e tiveram que responder perante a polícia ou o ministério público. Nos julgamentos, tiveram que prestar depoimento à polícia, ao ministério público, tiveram que contratar advogado quando tinham dinheiro para isso, foram acusadas, tiveram que ser convocadas testemunhas, realizaram-se sessões de julgamento em que foram interrogadas sobre a sua vida. O número de casos investigado e julgado aumentou desde o último referendo, como seria de esperar.

Sei que os factos incomodam muito os partidários do Não. Acham até que esta crueldade para com estas mulheres é preventiva e, para muitos desses, que uma pena de prisão de três anos é menor do que a que se devia aplicar a um homicídio. Outros, mais radicais ainda, entendem que o homem devia ser julgado como cúmplice e, entre os que entendem que se trata de um crime contra a vida, acham mesmo que a razão de ter sido violada não deveria ser motivo para uma mulher poder escolher abortar. Que o incómodo se transforme neste discurso mole - é crime mas o crime não deve ser condenado - é somente uma prova de que tais radicais têm receio de expor o seu ponto de vista na sociedade portuguesa.

Tenho defendido e continuo convencido de que a única estratégia para o Sim é repetir a pergunta e apelar a que as pessoas façam a escolha: ou se mantem a lei criminal e portanto se julgam as mulheres, que podem ser condenadas a 3 anos de prisão, ou se altera a lei como nos outros países europeus. A profunda desorientação do Não perante os factos dos julgamentos e perante a sua própria hipocrisia sobre a condenação das mulheres é a melhor prova, para quem duvidasse, de que esta é a orientação vencedora.

E, se assim for, o que falta é um imenso trabalho de convencimento da população, do interior como das cidades, de todas as idades, católicos ou sem religião. Esse trabalho ainda está por fazer.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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