Pensar a Política III: Trocar o certo pelo incerto e fazer o referendo?

porFrancisco Louçã

14 de February 2007 - 0:00
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No período preparatório do referendo, surgiram muitos argumentos contra a sua realização. Segundo uns, tratar-se-ia de correr um risco desnecessário, porque o Parlamento teria maioria para votar a lei. Para mais, seria perder tempo. Segundo outros, o referendo é sempre arriscado, por natureza, e devem-se evitar os riscos. Esses argumentos têm uma justificação razoável: havia um risco no referendo. Mas são politicamente errados, na minha opinião.

Começo pela justificação. O referendo troca o certo pelo incerto, diziam. É inteiramente verdade que ninguém podia garantir a certeza sobre o resultado final do voto. Mas seria mesmo "certo" o resultado do voto em parlamento, sem o referendo e contra o referendo? Não seria. Pelo contrário, o que é certo é que esse voto nunca se realizaria. Simplesmente, não havia votos suficientes no parlamento para aprovar a lei em votação final global. É de recordar que cerca de 30 deputados PS tinham feito uma declaração de voto na legislatura anterior exprimindo reservas quanto à lei. E é de recordar que o PS se amarrou a um compromisso eleitoral de só proceder à alteração da lei mediante referendo, pelo que sempre se opôs à decisão simplesmente parlamentar. Numa palavra, nada era mais certo de que não haver votos suficientes no parlamento para decidir a lei sem um referendo prévio.

Segundo argumento. O referendo faz perder tempo. Também é verdade, perdeu-se tempo: por duas vezes o referendo foi rejeitado, pelo Presidente Sampaio e depois pelo Tribunal Constitucional. No primeiro caso o PCP, PSD e CDS votaram contra o referendo, no segundo o PCP e o CDS votaram contra e, quando o referendo foi finalmente convocado, tinha os votos contrários do PCP e a abstenção do CDS. Perdeu-se tempo de facto, mas para contar esse tempo com rigor era preciso que houvesse uma alternativa que fosse realizável mais cedo - e não havia.

Na verdade, perdeu-se tempo desde o 25 de Abril. Nenhum dos governos provisórios aceitou alterar a lei. Só quando já havia maioria de direita é que um partido de esquerda (o PCP) apresentou um projecto de lei descriminalizando as mulheres que abortaram. Perdeu-se tempo quando Guterres impôs um referendo em acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, paralisando a lei durante anos.

Assim, o problema político foi sempre saber como recuperar o tempo. E por isso é que se impunha o referendo. Porque era a única forma politicamente realizável de mudar a lei. É certo que havia outra: o parlamento tinha capacidade constitucional para mudar a lei e podia mesmo invocar esse direito, dada a recusa sucessiva de referendo pela direita e pelas instituições. Mas essa via era inviável. E era socialmente desautorizada.

Tendo havido um referendo anterior, não se podia deixar ao Não a vantagem da vitória referendária.

Aceitar o risco - e correr o risco - de fazer o referendo era a única forma politicamente forte e socialmente apoiada de mudar a lei. Aceitar o referendo era portanto a escolha de quem queria disputar o referendo. E disputá-lo no terreno do Não, nos distritos onde o Não tinha ganho, e com os argumentos para fazer mudar a opinião dos sectores populares que tinham dado a vitória ao Não.

Finalmente, a vitória do Sim no referendo torna a lei irreversível. É certo que Ribeiro e Castro ameaça com um novo referendo dentro de oito anos. Mas essa proposta não resiste a um teste muito fácil: como é que seria a pergunta? Qualquer coisa como "concorda que se volte a impor uma pena de 3 anos de prisão para a mulher que aborte?" Ou "Concorda com a solução Bagão Félix para os castigos com trabalho comunitários para a mulher que aborte?" Nenhuma direita, nem a mais abusiva contra as mulheres, jamais fará uma campanha para esse tema.

O referendo teve uma virtude. Encerrou a questão do aborto em Portugal. Com o voto maioritário. Como tinha que ser.

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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