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Cortes na Cultura: “Não são mais do que políticas do desespero”

O Esquerda.net conversou com Sofia Neuparth, investigadora/criadora na área da dança (no CEM), sobre os cortes do governo no financiamento da cultura e sobre o estado da arte “que continua a não ser vista como forma de conhecimento e de trabalho”.
Sofia Neuparth: "Choca-me que alguém tenha um cargo político e não tenha a mínima percepção sobre o que está a fazer"

Os profissionais ligados ao sector do cinema já reuniram e assumiram uma posição de protesto que se tornou pública e que, de certa forma, provocou o recuo por parte do Ministério da Cultura em relação à retroactividade dos 10% de corte orçamental.
No entanto, para os restantes sectores culturais, dança, teatro, etc., tudo se mantém no que diz respeito ao estipulado no Decreto-Lei 72-A/210 já em vigor e que reduz os orçamentos e financiamento das actividades artísticas e culturais.
Tens conhecimento de como este decreto de lei irá afectar as outras outras da cultura?

Eu gostaria de falar em nome das artes, em geral, pois se há algo que lamento imenso é o facto de quando há cortes as pessoas só falam do que lhes foi cortado a elas. Acho que todos os artistas deveriam falar sobre o que está a acontecer, globalmente. Falo enquanto artista mas sobretudo enquanto cidadã, porque o que está acontecer resulta de uma grande falta de visão sobre a importância das artes e da cultura para o desenvolvimento do país. Choca-me que alguém tenha um cargo político e não tenha a mínima percepção sobre o que está a fazer em termos amplos e globais. Parece-me que tudo se baseia nessa lógica do agora, dos mandatos a quatro anos, sem nenhuma perspectiva do impacto das decisões, a médio e longo prazo.
Também se baseia tudo na lógica da popularidade, numa inexistente reflexão geral e eu acho que é preciso fazer isso. Uma reflexão que deverá ser feita não só pelos artistas, como também pelos ditos políticos, os economistas. Sinto mesmo uma grande falta de respeito neste tipo de atitudes pois não são mais do que “políticas do desespero”. Quando a perspectiva é esta só poderemos ficar desesperados pois não existem vias de reflexão, vias para a vida, apenas para a sobrevida e a matar todas a gente à volta! É tudo caótico e redundante. A situação da cultura é sintomática.
A arte continua a não ser perspectivada como uma forma de conhecimento ou como trabalho. Continuamos a achar, e muitas vezes por culpa de muitos artistas também, que a arte é para entreter, é uma coisa digestiva – as artes performativas, por exemplo, são algo divertido para ver depois do jantar... - e, assim, tudo o que seja reflexão, construção, criação, no sentido de criar humanidade, perde-se por aí. Andamos muito ocupados a lutar por bolos, tal como Maria Antonieta  - «não temos pão mas dêem-me bolos» - isto é absurdo.
Isto nota-se também no recuo acentuado do investimento na área da investigação, não só na artística como nas ciências sociais e humanas. Porque os cortes são sempre feitos sobre aquilo que não entra na média popularidade do para já, porque só interessa fazer “para já”. Tem de ser o máximo de vida mas em quatro anos...
Não se considerando a arte sequer como uma forma de conhecimento ou como trabalho então corta-se aí, no supérfluo que é arte. Esquecem-se que não existem ideias se não houver criação, nem existirá a política se não houver criação. Eu diria que nem existirá sociedade, se não houver criação.
Isto tudo é um jogo mas neste jogo eu não compactuo. Por exemplo, porque é que o CEM tem pagar pela ocupação de espaço público quando faz coisas na rua, de acesso livre, feitas também pelas pessoas que vivem na rua, enquanto os megas festivais que cobram bilhete não pagam pela ocupação do espaço público?
Os recuos da ministra inscrevem-se neste jogo do “toma lá, dá cá”, “ficas tu, não, fico eu”. Sempre que a ministra se sentir mais aflita, parece-me, irá remediar pequenos impactos mas tudo permanece na mesma lógica.
E ainda assim eu pergunto como poderão as pessoas ter dinheiro para pagar mais impostos, como é que as pessoas vivem sem dignidade? Onde estão esses outros 10% de outras coisas? Eu luto não só pelo CEM mas pela dignidade da vida que incluí a arte. Quem somos nós, vis mortais, para achar que devemos ou não incluir a arte na nossas vidas se ela é até mais antiga do que a política e a economia...
Na minha opinião, a investigação artística não serve para criar espectáculos para divertir as pessoas. É antes um levantamento de formas de conhecimento que são os próprios alicerces da humanidade. Corta-se no quê então?
Em relação a todas as estruturas artísticas é absolutamente absurdo fazerem cortes em financiamento que já está gasto, isto falando, no tal “agora”. Porque isto inscreve-se na lógica do “pronto, não se fazem x ballets não sei onde”. Como se o que se altera seja a escolha de alguém que já não vai ao teatro e fica em casa. Como se as peças de teatro, de dança, a exposições de artes plásticas não tivessem uma trama de pessoas, de carne e osso, a criar a possibilidade de haver aquela peça. Estamos também a falar de salários, de condições de vida, de trabalhadores.

As consequências destes cortes reflectem-se, aparentemente, apenas no número de espectáculos, mas também na sua qualidade e diversidade. E nas vidas dos profissionais intermitentes?

Bom, os artistas independentes ainda nem sequer têm uma resposta da Direcção Geral das Artes sobre o concurso sobre este ano. Como vai ser?
Tudo isto continua a ser reflexo da continuidade da não consideração sobre a especificidade do “trabalho” que a arte é. É evidente que quando há estes cortes, quando continua a não ser feita uma reflexão de fundo sobre a adequação de determinadas legislações em relação à especificidade dos diversos sectores das áreas artísticas e do espectáculo (incluindo todos, obviamente, pois não há distinção entre o coreógrafo e o técnico de luz), todos aqueles que são os agentes que possibilitam a arte não são considerados e não se equacionam as consequências neste nível.
Nesta lógica do “agora” o que se está a criar é uma razia, uma completa desidratação de todo o tecido artístico que terá consequências profundas no desenvolvimento do país.

Expectativas para o futuro? Como ficará a Cultura em Portugal?

Na REDE, e entre todos os artistas, falamos há tanto tempo sobre a questão de conseguir que 1 por cento do PIB seja para a cultura... UM por cento?! Continuamos a tentar configurar se a arte cabe ou não cabe...  É a mesma lógica dos tais festivais que não pagam pela ocupação do espaço público, trata-se de um jogo de interesses onde o lucro monetário tem um lugar preponderante. Por exemplo, o CEM terá agora, em Julho, o Festival Pedras d'Água onde todo o programa é de entrada livre. Não há impacto económico a medir não se cobrando bilhete, como é evidente.  
Além disso, a televisão parece sempre melhor porque não ajuda a pensar, só entretém. Já a investigação artística é perigosíssima. Imaginem se as pessoas começam a “querer” viver? Que chatice... é aterrador.

Haverá uma reunião que juntará profissionais de todos os sectores das artes na próxima 2.ªf. O que poderá sair desta reunião?

Eu estarei lá, claro. Ainda não está nada concertado. Haverá uma resposta que será certamente aguçada. Eu até tenho pena que infelizmente não venha a ser uma resposta mais de fundo. Mas claro, se a luta é sobre “o agora”, as respostas têm de ser sobre “o agora”. E é evidente que toda a classe artística tem imensa força, se quisermos ver isto de um certo lado, porque somos mediáticos, etc. Poderemos sempre puxar pelos nossos galões.
É evidente que toda a reacção que houver será apoiada pela reflexão que já existe, da nossa parte. Os artistas também estão a par das actuais condições, das contingências. Exemplo disso é a intervenção dos Intermitentes, da própria REDE. São estruturas que reúnem com regularidade e que fazem o que muitos políticos nunca fizeram que é pensar em coisas que não sejam só reagir.
Claro que as pessoas se juntam mais quando há estados de pânico, mas julgo que mobilização será bastante forte. Digo isto tendo em conta a minha experiência, uma vez que já estou neste trabalho há muito tempo e também dentro da reflexão sobre política cultural. Eu faço parte dos grupos de fundo, haja ou não pânico, e eu não sou a única, felizmente. Por isso haverá de certeza uma grande mobilização.

 


Sofia Neuparth é investigadora na área da dança, professora de corpo, criadora e dirige o C-E-M – Centro Em Movimento. É membro fundador da APPD e da REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea e colabora na Plataforma dos Intermitentes do Espectáculo e do Audiovisual.

Entrevista por Sofia Roque.

    
    
 

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