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Os dilemas das barragens

Estamos num país onde o desperdício de energia atinge os 60%. Perante isto, a prioridade deve ser a gestão da procura, não da oferta, conforme tem sido defendido pelas ONGs ambientalistas.

O debate sobre as barragens encontra-se sempre condicionado pela chantagem que consiste em escolher entre a água e o carvão. Mas apenas faz sentido ter este debate tendo em conta as implicações da opção hidroeléctrica para os dilemas ecológico, social e energético. Vejamos então como se comporta o Plano Nacional de Barragens (PNB).

O dilema ecológico

Um conjunto de directivas europeias compromete Portugal com objectivos em relação à qualidade da água e à gestão da água em função de planos de bacia hidrográfica (área da superfície terrestre drenada por um rio e seus afluentes). O cumprimento destas directivas era imperativo num país com secas cada vez mais frequentes e onde escasseiam programas de redução de consumos. Mas o facto de o PNB ter sido aprovado antes de terem sido aprovados os planos de gestão das bacias hidrográficas mostra como temos as prioridades trocadas.

A construção de barragens degrada consideravelmente a qualidade da água de um rio, como consequência da sua retenção em reservatórios. Problemas de eutrofização (proliferação de algas) e de contaminação da água são comuns em albufeiras. No Alqueva, por exemplo, a água encontra-se contaminada com níveis elevados de pesticidas e herbicidas, segundo um estudo da Universidade de Aveiro1. Com grandes barragens temos acesso a água, sim, mas de má qualidade.

As barragens são também más notícias para a preservação da biodiversidade. Os peixes tendem a extinguir-se como consequência da criação de obstáculos à sua migração (apesar das eclusas para peixes) e da degradação da qualidade da água. Nas albufeiras, proliferam as espécies exóticas, tendo em conta que o ecossistema se aproxima do de um lago. Quanto aos vertebrados que percorrem as zonas afectadas, o surgimento de uma enorme albufeira onde dantes havia um pequeno rio coloca também um entrave à sua mobilidade. O habitat de muitas espécies animais torna-se assim mais reduzido, aumentado o risco de extinção.

Outro grande inconveniente das barragens é o da redução do caudal sólido. Os rios transportam grandes quantidades de sedimentos ao longo do seu trajecto. Quando desaguam no mar, uma parte dos sedimentos irá fornecer nutrientes ao mar, essenciais para muitas espécies piscícolas. Outra parte deposita-se na costa, dando origem à areia das praias. Ao impedirmos a circulação dos sedimentos pela construção de represas estamos assim a contribuir para a erosão costeira.

Tudo isto se justifica, dizem os defensores da opção hidroeléctrica, face à necessidade de combater o aquecimento global. Mas as barragens não são neutras em carbono. Nas albufeiras a matéria vegetal decompõe-se a um ritmo superior ao normal, estimulando a produção de metano, um poderoso gás com efeito de estufa. Estudos científicos citados pela International Rivers2 concluem que 4% da contribuição humana para o aquecimento global pode ser atribuída às barragens.

A magnitude dos danos ecológicos causados pela energia hidroeléctrica atinge o seu expoente com as barragens construídas para aproveitar o excedente de produção das eólicas. Neste caso, constroem-se duas barragens (a principal e uma mais pequena de apoio) e a água é descarregada a montante em horas de elevada procura e bombeada de novo a jusante em horas de baixa procura. O constante vai-e-vem da água até ao momento em que finalmente é libertada para o rio agrava todos os problemas acima mencionados.

Em suma, o dilema ecológico desqualifica a energia hidroeléctrica como uma opção “limpa” e até como uma energia renovável, dado que há diferenças substanciais entre a água que entra e a água que sai de uma barragem.

O dilema social

Construir uma grande barragem implica quase sempre deslocar populações, sendo frequentes os casos em que povoações inteiras são submersas. As condições em que se efectuam os realojamentos são ilustrativas da forma como se encara o mundo rural. Forçados a abandonar as terras mais férteis, situadas nos vales dos rios, os locais são deslocados para zonas onde a produtividade agrícola é menor, recebendo em troca uma indemnização simbólica.

Quanto às promessas de emprego e desenvolvimento, cedo se desvanecem. Apenas durante a fase de construção as barragens dão emprego, quando as construtoras importam trabalhadores de todo o país e os colocam em guettos improvisados, sem qualquer contacto com a população local. Uma vez construída a barragem o emprego gerado se resume-se a quase zero.

O mesmo se pode dizer das promessas de criação de uma atracção turística. Os dedos das mãos não chegam para contar as albufeiras que se tornaram em pólos dinamizadores de turismo em localidades do interior. Por outro lado, deveria ser claro que existe um potencial não explorado de turismo de natureza em zonas naturais ainda não submergidas.

O dilema energético

Estamos num país onde o desperdício de energia atinge os 60%. Perante isto, a prioridade deve ser a gestão da procura, não da oferta, conforme tem sido defendido pelas ONGs ambientalistas. A execução do Plano Nacional de Barragens levará a um acréscimo na produção de electricidade que corresponde a 3,3% do consumo final de 2006, um pequeno excedente que poderia facilmente ser obtido de forma económica e ecológica investindo em medidas de eficiência e conservação energética.

Reduzir a dependência face aos combustíveis fósseis e reduzir as importações de energia são objectivos válidos, é claro. Mas fazê-lo à custa da degradação de um recurso comum tão essencial à vida como a água dificilmente pode fazer sentido, mesmo de um ponto de vista meramente geo-político ou económico. O facto de não aproveitarmos plenamente o potencial energético dos nossos rios não deve ser encarado como uma falha da política energética mas como um investimento na sustentabilidade.

Mesmo se ignorarmos a gestão da procura, portanto, o investimento em barragens não surge como uma alternativa defensável ao investimento em formas limpas de produção de energia. O argumento da fiabilidade do abastecimento não sobrevive a uma análise dos dados, na medida em que as oscilações sazonais no caudal dos rios ao longo de um ano, um mês ou até um dia, são muito consideráveis. A fiabilidade da energia hidroeléctrica não é tão elevada quanto diz a EDP e será cada vez mais reduzida à medida que as secas se tornarem cada vez mais frequentes devido às alterações climáticas, conforme estimado pelo IPCC3.

O que está em causa

Para aumentar um pouco a produção de energia, o governo pretende degradar ainda mais as bacias hidrográficas dos rios Douro, Vouga, Mondego e Tejo. Entre outros crimes ambientais, o PNB prevê a destruição do Sabor, o último rio selvagem da Península Ibérica e o fim da linha férrea do Tua. No fim, ficaremos mais pobres, pois teremos dado mais uma machadada no nosso património comum. Não há campanha publicitária da EDP ou propaganda governamental que possa compensar esta perda.

1 “Estudo científico revela que a água do Alqueva é tóxica”, Público, 17/06/2009

3 Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, órgão da ONU responsável por sintetizar as descobertas científicas no estudo do clima. A previsão é que enfrentaremos na Península Ibérica uma redução na produção hidroeléctrica de 20% a 50% até 2070.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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