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Epílogo

Também me intriga pensar como foi possível a Marinha de Israel fazer uma operação desta envergadura nas barbas e sem conhecimento da VI Esquadra norte-americana.

Os mortos estão enterrados. Os desaparecidos assim vão continuar em águas mediterrânicas vedadas a gestos piedosos. Os depoimentos de quem viveu para contar estão recolhidos e registados. As imagens que escaparam à saga censória terrorista guardam-se para memória futura, porque a realidade actual não está preparada para os validar. Os assaltantes da Frota da Liberdade ficam com a tarefa de fazer o inquérito ao sucedido e vão brevemente explicar-nos como tudo se passou, porque a ONU é ‘tendenciosa’. O mundo fará de conta que acreditará e tudo regressará, tranquilizadas as consciências dos diplomatas universais, à santa paz do Senhor.

O epílogo do episódio da Frota da Liberdade é uma espécie de empate técnico entre assaltantes e assaltados, entre assassinos e vítimas, entre corsários e abordados. O Conselho de Segurança da ONU deu o mote, por inspiração de Estados Unidos, Reino Unido e França, colocando no mesmo patamar de responsabilidades os que executaram a operação de guerra e os que, desconhecendo as boas regras da educação (provavelmente porque muitos deles eram infiéis), não aceitaram que lhes entrassem assim pela casa dentro.

O equilíbrio salomónico das Nações Unidas não foi suficiente. Israel disse que não ao ‘inquérito internacional’ e preferiu um ‘inquérito imparcial’. Para que indubitavelmente o seja, decidiu-se organizá-lo por sua conta e risco, enquanto na Casa Branca manchada de crude o Presidente Obama continua a recolher dados e a reflectir em silêncio. Quem fala é o seu vice Biden – e mais valia que lhe seguisse o exemplo.

O episódio está encerrado para efeitos de grande consumo mediático porque Israel cuidou atempadamente que não se repita o efeito perturbador do relatório Goldstone, o tal que ousou acusar o país de ter graves responsabilidades no massacre de Gaza de 2008/09. Agora, como escreveu o cônsul israelita em Nova Iorque a uma correspondente que pedia contenção perante a Frota da Liberdade, “não queremos que nada de mal aconteça à população de Gaza, apenas desejamos que viva tranquilamente as suas rotinas”. Aprisionada, é claro, mas isso não precisou de relembrar.

Permitam-me, porém, que em jeito de post-scriptum compartilhe duas reflexões ainda a pairar teimosamente na minha cabeça.

Estou curioso em saber como vai a NATO gerir o precedente que abriu em relação ao famoso artigo 5.º do Tratado do Atlântico, o que reza “quando um de nós é atacado somos todos”. A Turquia, Estado membro e fundador da Aliança, foi atacada e nada aconteceu; mais do que isso: Estados Unidos, Reino Unido e França opuseram-se à Turquia no Conselho de Segurança da ONU. Nota zero em solidariedade.

Também me intriga pensar como foi possível a Marinha de Israel fazer uma operação desta envergadura nas barbas e sem conhecimento da VI Esquadra norte-americana com a qual coopera no Mediterrâneo no combate à pirataria e ao terrorismo. Passará por aqui o silêncio de Obama?

Artigo publicado no jornal Sol de 11 de Junho de 2010

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
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