As circunstâncias

porMiguel Portas

04 de June 2010 - 19:36
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Ao contrário do que faz crer a propaganda sionista, as coisas não correram mal por causa dos activistas, mas porque a combinação entre decisão política e execução militar se revelou trágica.

Telavive afirma que os seus soldados foram atacados e difundiu imagens que indicam isso mesmo. O governo israelita mostrou ainda fotografias do "material de guerra" a bordo do "navio do ódio". Ao contrário da sequência filmada, as fotos não provam nada. Facas de cozinha, chaves de fendas, paus e correntes são comuns em qualquer porão. E as máscaras anti-gás e fisgas incluídas no "arsenal" nem com boa vontade se podem catalogar como ofensivas.

Entretanto, com a libertação, sob pressão internacional, dos 648 prisioneiros não israelitas que integravam a frota, começou a ser conhecido o ponto de vista dos sitiados. Eis o depoimento do jornalista da Al Jazeera, Mohamed Vall: "durante hora e meia pensámos que ninguém sobreviveria ao ataque israelita quando vimos 30 navios de guerra rodeando o nosso barco. Ficámos com medo de uma guerra total contra um barco repleto de homens, mulheres e até de crianças. Os primeiros soldados a entrar no barco não foram mortos, foram capturados pelos defensores do barco que fizeram um escudo humano". Foi uma mistura de pânico, medo e raiva, que explicou a reacção dos tripulantes ao desembarque dos primeiros soldados. A espantosa inépcia com que a operação foi montada ajuda a compreender o que se seguiu. Demos de novo a palavra a Mohamed Vall: "momentos depois, outro helicóptero maior depositou mais soldados e dessa vez dispararam imediatamente contra as pessoas e mataram todas as que podiam para poder chegar à cabina e tomar conta do barco". Os banhos de sangue nem sempre obedecem a planos premeditados. Muitas vezes, são consequência de decisões políticas que derraparam no plano da execução militar. É, aparentemente, o caso. Othman Battiri, outro membro da equipa da Al Jazeera, relata a sequência dos soldados e oficiais de cabeça perdida: "primeiro lançaram bombas de gases lacrimogéneos e dispararam balas de borracha e algumas pessoas ficaram feridas por estas munições. Depois passaram a usar munições de guerra, feriram vários homens e observei que quatro pessoas ficaram mortas. Vi dois homens morrer ao pé de mim, um deles tinha uma bala no peito, outro sangrava abundantemente. Descemos e encontrámos mais mortos: um deles tinha uma bala na cabeça como se tivesse sido atingido por um franco-atirador. Havia munições de guerra por todo o lado. Cerca das sete da manhã começaram a entrar nos nossos camarotes e a amarrar-nos as mãos".

Já não é, contudo, possível, invocar a circunstância da espiral de medo e sangue para explicar ordens que ocorrem bem depois da matança. Um deputado egípcio e médico dentista, Hazem Faroug, declarou que "quando tentámos transportar os feridos, os soldados israelitas impediram-nos, disseram que não podiam ser os homens a fazê-lo. Apontaram-nos armas à cabeça com iluminação laser e disseram às mulheres para levar os feridos. Algumas não conseguiram..."

Ao contrário do que faz crer a propaganda sionista, as coisas não correram mal por causa dos activistas, mas porque a combinação entre decisão política e execução militar se revelou trágica. A decisão política existiu: os barcos não deveriam chegar ao seu destino, acontecesse o que acontecesse. E houve uma operação militar: se as imagens divulgadas por Israel "explicam" algo, é que o nível de incompetência revelado no assalto foi tão responsável pela tragédia quanto a decisão política.

Atirar as "culpas" sobre os tripulantes do barco é que não lembra ao diabo. De um lado estão militares armados e presumivelmente disciplinados, obedecendo a um plano de operações; do outro, civis entre o pânico, a indignação e a raiva. Alguns resistiram? Como não? Pior do que a decisão e muito pior do que a incompetência, só o modo como se tira a água do capote. Definitivamente, Israel já não é o que era...

Perguntar-me-ão: e os activistas não esticaram a corda ao não obedecerem às ordens da defesa marítima israelita? A resposta a esta pergunta mais do que legítima divide-se em duas partes: por um lado, esta era a nona tentativa desde que, em Agosto de 2008, se constituiu o movimento internacional que tem conseguido quebrar, episodicamente, o bloqueio a Gaza. Das iniciativas passadas, cinco tiveram sucesso e três foram travadas pelas autoridades do Estado de Israel. Em nenhuma delas, contudo, houve vítimas mortais a registar. Em nenhuma delas, os militares israelitas se comportaram com os estrangeiros como se eles fossem palestinianos... Por outro lado, este movimento de ajuda humanitária não tem por principal objectivo a mediatização. Ele quer mesmo furar o bloqueio e demonstrar que é possível fazê-lo usando contra as armas, meios de resistência não violenta. Que é possível à "sociedade civil" ser eficaz onde a paralisia da comunidade internacional bordeja a cumplicidade. Forçar a corda é a condição de passagem. Inverter os parâmetros de responsabilidade ou imitar Pôncio Pilatos (ao estilo, "houve culpas dos dois lados") é esquecer o essencial: que Israel aprisionou, desde Agosto de 2008, milhão e meio de almas a céu aberto e que lhes nega o mínimo de condições de dignidade na sobrevivência. Anteontem, o embaixador de Israel em Bruxelas chegou atrasado a uma audição no Parlamento Europeu e exibiu a sua indignação por sido "bloqueado" durante duas horas e meia numa embaixada cercada por manifestantes pró-palestinianos. Foi preciso que alguém lhe perguntasse se conseguia imaginar a indignação dos de Gaza, sob bloqueio há dois anos, para se perceber como o mundo é visto em função da cadeira onde cada um de nós se senta...

Por mim, deixo-lhe apenas uma pergunta: imagine que os indonésios tinham considerado o "Lusitânia" como uma "arma de guerra" ao serviço dos "terroristas de Xanana Gusmão", que o barco em que ia Ramalho Eanes decidia desobedecer pacificamente, e que os militares da ocupação tinham actuado como agora o fizeram os israelitas. De que lado estaria? No meio de lado nenhum?

Miguel Portas
Sobre o/a autor(a)

Miguel Portas

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
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