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Tè Tremblé - A terra haitiana tremeu

No General Hospital, os corpos eram empilhados até 1,20 metros de altura perto da casa mortuária. Na casa comunitária, a Mateus 25, os médicos estenderam uma toalha de mesa para fazer uma amputação na mesa da cozinha, auxiliados por candeeiros de tecto. O homem ferido, na casa dos 20 anos, é considerado afortunado: estava entre a minoria de feridos que tinham assistência médica. E, ao contrário de muitas amputações realizadas noutros locais no Haiti, os médicos que chegaram na segunda-feira estavam a usar anestesia que tinham trazido.

Enquanto esta desagradável amputação estava a suceder, uma inesperada entrega de ajuda alimentar chegou. A Casa Mateus 25 acolhe normalmente 35 hóspedes. Agora, mais de 1000 hóspedes estão lá, acampados no campo de futebol adjacente. Tem havido muitos avisos devido às preocupações de possíveis motins e de cenas de violência que a distribuição de auxílio pode provocar. Testemunhámos o total oposto, pois estava estabelecido um grupo da comunidade, encarregue de distribuir alimentos. As pessoas alinhavam-se e recebiam os seus víveres, deixando sem perturbações a difícil cirurgia que era conduzida ali perto. Isto tem vindo a ser habitual à medida que fomos viajando pela catástrofe: pessoas sem nada - famintas, com sede, procurando os entes queridos, enterrando os seus mortos, tratando dos seus feridos - mostraram coragem, civilidade e compaixão, apesar do seu desespero silencioso.

Fomos a casa de Myriam Merlet, a chefe de pessoal do Ministério haitiano da Mulher. Ela ajudou a atrair a atenção internacional para o uso da violação como arma política e trabalhou com a dramaturga e activista Eve Ensler no movimento do Dia V para ajudar a acabar com a violência contra a mulher. A sua casa e a comunidade envolvente estavam inteiramente destruídas. "Nós apenas puxámos o seu corpo para fora", disseram-nos no domingo, cinco dias depois do terramoto. Ninguém sabia que ela tinha morrido, ou até se podia já ter sido resgatada. A sua irmã, Eartha, conduziu-nos à sua recente sepultura.

Aventurámo-nos para além de Port-au-Prince, para o epicentro do terramoto, depois de Carrefour até Léogâne. A avaliação das Nações Unidas situou o nível de destruição em Léogâne de 80% a 90% das estruturas destruídas, sem nenhum edifício governamental de pé. Pelo caminho, um jovem acenou para o nosso carro, dizendo: "Por favor, nós vimos alguns helicópteros a passar, mas não pararam aqui. Não temos auxílio. Não temos comida".

Um homem coberto de pó estava a usar uma marreta para partir o cimento que tombou sobre o seu avô. Um pai perto do local tinha acabado de desenterrar dos escombros o seu filho de 1 ano, morto no seu parque. De acordo com a Agência France-Presse, as Nações Unidas avisaram que não podiam "estender a sua operação de auxílio para áreas periféricas até que a sua segurança possa ser confirmada".

Ao viajarmos para Léogâne não sentimos qualquer ameaça, apenas vimos pessoas com uma terrível necessidade de ajuda. Enquanto estivemos em Léogâne, um helicóptero missionário aterrou e inexplicavelmente levantou voo, e a tripulação começou a arremessar pães-de-forma para o chão. A raiva presente nos jovens haitianos crescia perante o cenário. Um deles, exasperado, desfez os pães e gritou, "Não somos cães para que nos atirem ossos".

Falámos com o presidente da câmara de Léogâne, Alexis Santos, que pareceu incapaz e impotente perante a quase total destruição à sua volta. Perguntei-lhe, à luz da frente organizada pelo governo dos Estados Unidos, com a nomeação, feita pelo presidente Barack Obama, dos anteriores presidentes Bill Clinton e George W. Bush para liderar a resposta dos EUA, o que achava da oferta de Jean-Bertrand Aristide - o ex-presidente haitiano expulso - de regressar ao Haiti, do exílio na África do Sul, e apoiar o Presidente René Preval, numa frente unida para ajudar à recuperação. Santos, de forma alguma apoiante de Aristide, disse-me que achava que uma boa ideia.

De volta à Casa Mateus 25 (recebeu este nome devido ao versículo bíblico "O que quer que faças pelos meus irmãos e irmãs mais novos, fá-lo por mim"), falei com um dos cirurgiões. A Dra. Jennifer Bruny, que veio com outros médicos do Children´s Hospital, em Denver, realizou a amputação horas antes. A natureza do desastre, com milhares de ferimentos por esmagamento e a falta de cuidados durante tanto tempo, fez da amputação um dos únicos meios actualmente disponíveis para salvar vidas. "Esta amputação não devia ter sido necessária", disse-me ela. "Isto poderia ter sido facilmente tratado mais cedo. Estas pessoas precisavam de ajuda imediata".

19 de Janeiro de 2010

Denis Moynihan contribuiu a nível de pesquisa para esta coluna.

Amy Goodman é apresentadora de "Democracy Now!", um noticiário internacional diário, nos EUA, de uma hora de duração que emite para mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em 200 emissoras em espanhol. Em 2008 foi distinguida com o "Right Livelihood Award" também conhecido como o "Premio Nobel Alternativo", outorgado no Parlamento Sueco em Dezembro. É co-autora de "Standing Up to the Madness: Ordinary Heroes in Extraordinary Times".

Tradução de João Tiago dos Santos Mira Branco

Sobre o/a autor(a)

Co-fundadora da rádio Democracy Now, jornalista norte-americana e escritora.
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