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Três estórias sobre o neo-liberalismo

Quando um problema nos é apresentado de uma forma tal que saímos sempre a perder seja qual for a nossa escolha, o melhor é mudar a forma como o problema é formulado.

Aviso: os contos que se seguem são apropriados para crianças, mais até do que as alienantes estórias da carochinha. Mas não são para adormecer. Mantenhamos então os olhos abertos.

Estória #1: Um casal dança desajeitadamente o tango numa danceteria. Deliberadamente, pisam toda a gente por onde passam. Um dos dançarinos desfaz-se em desculpas, mas as pessoas ficam cada vez mais furiosas com a falta de jeito. Eventualmente, são corridos da danceteria e a festa continua sem pisadelas.

Se alguém nos ataca de forma deliberada, um posterior pedido de desculpa não acompanhado de arrependimento só pode ser uma forma de hipocrisia. Foi isso mesmo que fez Passos Coelho, o parceiro do tango infernal de Sócrates. Após anunciar mais medidas de austeridade para quem trabalha, quem não consegue trabalhar e quem já trabalhou uma vida, o aristocrata que lidera o PSD pediu desculpa ao povo português. Está na hora de recusar este pedido de desculpa e correr com o Bloco Central PS-PSD-PP do governo. Está na hora de acabar com a guerra de classes dos mais ricos contra os mais pobres e construir uma sociedade mais igualitária.

Uma vez ultrapassado o pesadelo neo-liberal, dancemos o tango nas ruas. Sem pisadelas.

Estória #2: Um grupo de piratas saqueia sucessivamente um país, esvaziando os cofres dos bancos e das tesourarias públicas. A cada saque, o governo reage com aumentos nos impostos, para recuperar o dinheiro perdido. Após um grande saque, contudo, a população revolta-se, destitui o governo e elege um novo governo que defenda o país contra os piratas. Os piratas, resignados, decidem mudar de ocupação e inscrevem-se no centro de emprego.

No centro da crise económica que vivemos encontramos sucessivos saques. Saques aos cofres das empresas, pelos empresários. Saques aos cofres do Estado, pela burguesia que foge aos impostos com a mesma facilidade com que estende a mão para receber subsídios. Saques aos nossos bolsos, por todos aqueles que lucram com a desgraça alheia.

O saque atingiu já o seu expoente na Grécia. Para preservar o PEC, o euro, a independência do Banco Central Europeu e tantos outros dogmas da Europa neo-liberal, o governo grego pretende reduzir despesas sociais, aumentar impostos e descer salários. Os piratas ficam de fora, à espera de uma próxima oportunidade para atacar.

Mas há quem resista. Há quem queira lutar por uma Europa dos povos, da solidariedade e da justiça. As ruas gregas enchem-se de gente assim, gente que luta pelos seus direitos. Gente que luta pelos nossos direitos. Solidarizemo-nos com a nossa gente e defendamo-nos dos piratas.

Estória #3: Um professor coloca o seguinte desafio a uma aluna: “Na minha mão, tenho uma vara. Se me disseres que a vara está aqui, dou-te com ela na cabeça. Se me disseres que a vara não está aqui, dou-te com ela na cabeça. Se não disseres nada, dou-te com ela na cabeça”. A aluna pega na vara e dá uma pancada na cabeça do professor. Prova superada.

Quando um problema nos é apresentado de uma forma tal que saímos sempre a perder seja qual for a nossa escolha, o melhor é mudar a forma como o problema é formulado.

No meio de mais uma crise capitalista, os sacerdotes do neo-liberalismo que pululam os media apresentam-nos escolhas supostamente inevitáveis. Temos de escolher entre um aumento nos impostos sobre os salários ou a perda total de direitos sociais. Temos de abdicar da saúde, da educação e de tantos outros bens públicos ou enfrentaremos a bancarrota no futuro. Temos de aceitar salários mais baixos ou perderemos competitividade e ficaremos na ruína. Temos de levar com a vara na cabeça, vezes e vezes sem conta.

Mas os pilares do neo-liberalismo (livre mercado, concorrência, desregulação do sistema financeiro, ausência de direitos sociais, flexibilização laboral, independência do banco central, e por aí em diante) são a base dos maiores problemas que a humanidade enfrenta. O capitalismo atenta não só contra a dignidade humana mas também contra as próprias condições de sobrevivência da espécie humana. Peguemos então na vara, antes de levarmos de novo com ela na cabeça.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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