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Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Dedicada a Manuel de Campos Pereira e Urbano Tavares Rodrigues, com quem a autora diz, na dedicatória, “partilhar as responsabilidades do aparecimento” da obra, Pigalle foi publicada em 1965, vindo a ser o segundo romance publicado de Nita Clímaco.

A novidade desta obra, no panorama literário português, está na transposição da experiência da emigração portuguesa em França para a literatura portuguesa pela primeira vez, derivada da experiência em primeira mão. Aliás, a própria badana do livro faz alusão a este aspecto, ditando o seguinte: “Em Pigalle, pela primeira vez, uma escritora portuguesa, com conhecimento de causa, debruça-se sobre o problema de adaptação dos emigrantes portugueses que vêm para Paris.”

Em Pigalle, a acção gira à volta de Anisabel, que, não aguentando mais “viver em Lisboa, naquela rua horrorosa e sombria, acorrentada a todas as desilusões da juventude, a lidar dia a dia com aquelas vizinhas mesquinhas” (p. 13/14), decide partir para Paris, procurando uma vida melhor e levando consigo José, o namorado. Anaisabel fora ama numa família francesa e, uma vez chegada a Paris, consegue um lugar de secretária numa clínica dentária. Começando a interessar-se por Serge, dentista que lá trabalha, começa, concomitantemente, a afastar-se do noivo. Posteriormente, acaba a relação com José, que se muda para outra cidade, iniciando uma relação amorosa com Serge. O francês, por sua vez, acaba por anunciar-lhe que teve uma proposta de venda da sua parte do negócio de medicina dentária e que tenciona aceitá-la caso Anisabel aceite mudar-se com ele para a Tunísia, fazendo ainda planos para um casamento.

Anaisabel diz que quer acompanhá-lo e, juntos, preparam-se para partir para a Tunísia a partir de Marselha, onde Anaisabel acaba por cair numa rede de tráfico de mulheres. A caminho do barco, de onde deveriam partir os dois para África, Serge finge esquecer-se do dinheiro e do seu bilhete no hotel, voltando para trás e prometendo a Anisabel encontrá-la no barco, ao qual nunca chega. É no final da narrativa, precisamente nas últimas três páginas, que Anaisabel percebe o que lhe aconteceu e em que situação se encontra. Serge não seria, afinal, seu amante, mas um cúmplice numa rede de tráfico.

Como em Falsos Preconceitos, o romance parece, inicialmente, querer contrastar o que seria uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre, moderna, descomprometida. Como no primeiro, acaba por mostrar-se uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico de carne branca, de redes de prostituição com destino à África do Norte.

Recepção/censura de Pigalle

Seria difícil escrever sobre a temática da emigração portuguesa quando esta era proibida, quando a própria palavra “emigração” já ligava os alarmes da censura. Assim, os livros autorizados sobre o tema, antes do 25 de Abril, foram escassos, tendo, apesar disso, sobrevivido A salto (1967), também de Nita Clímaco. Afinal, ao longo do seu tempo de vigência, o Estado Novo assumiu um papel forte enquanto planificador de emigração. Em causa estavam os interesses das elites económicas do país e, para mantê-los, o regime fazia uma intervenção policial e repressiva. A violência exercida sobre quem tentava emigrar era vista como legítima, uma vez que a estes se atribuíam as causas das condições económicas do país, já que a redução da mão-de-obra traria impactos negativos à sociedade portuguesa. Tendo isto por base, o Estado Novo criou uma máquina administrativa para manter os portugueses dentro de fronteiras.

Assim, e uma vez que o romance parte da contraposição entre um Portugal tacanho e uma França moderna, podia supor-se que a política anti-emigração surtisse, também na censura literária, os seus efeitos. Para mais, a narrativa culmina num episódio em que se desvendam as intenções de Serge: levar Anaisabel para uma rede de tráfico de mulheres destinadas à prostituição, tema tabu do regime. Ainda que não tenhamos tido acesso ao relatório do censor, pode adivinhar-se, pela leitura, que seriam estes os dois temas que golpeariam a moral vigente. Afinal, mesmo olhando para os relatórios referentes a obras de outros autores, portugueses e não só, vemos que há não só um claro desejo de, também na literatura, se apresentar uma cara limpa do regime e um Portugal paradisíaco mas também um vilipêndio total por tudo o que ao sexo diz respeito.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.