Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

porAna Bárbara Pedrosa

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

09 de August 2019 - 15:38
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Dedicada a Manuel de Campos Pereira e Urbano Tavares Rodrigues, com quem a autora diz, na dedicatória, “partilhar as responsabilidades do aparecimento” da obra, Pigalle foi publicada em 1965, vindo a ser o segundo romance publicado de Nita Clímaco.

A novidade desta obra, no panorama literário português, está na transposição da experiência da emigração portuguesa em França para a literatura portuguesa pela primeira vez, derivada da experiência em primeira mão. Aliás, a própria badana do livro faz alusão a este aspecto, ditando o seguinte: “Em Pigalle, pela primeira vez, uma escritora portuguesa, com conhecimento de causa, debruça-se sobre o problema de adaptação dos emigrantes portugueses que vêm para Paris.”

Em Pigalle, a acção gira à volta de Anisabel, que, não aguentando mais “viver em Lisboa, naquela rua horrorosa e sombria, acorrentada a todas as desilusões da juventude, a lidar dia a dia com aquelas vizinhas mesquinhas” (p. 13/14), decide partir para Paris, procurando uma vida melhor e levando consigo José, o namorado. Anaisabel fora ama numa família francesa e, uma vez chegada a Paris, consegue um lugar de secretária numa clínica dentária. Começando a interessar-se por Serge, dentista que lá trabalha, começa, concomitantemente, a afastar-se do noivo. Posteriormente, acaba a relação com José, que se muda para outra cidade, iniciando uma relação amorosa com Serge. O francês, por sua vez, acaba por anunciar-lhe que teve uma proposta de venda da sua parte do negócio de medicina dentária e que tenciona aceitá-la caso Anisabel aceite mudar-se com ele para a Tunísia, fazendo ainda planos para um casamento.

Anaisabel diz que quer acompanhá-lo e, juntos, preparam-se para partir para a Tunísia a partir de Marselha, onde Anaisabel acaba por cair numa rede de tráfico de mulheres. A caminho do barco, de onde deveriam partir os dois para África, Serge finge esquecer-se do dinheiro e do seu bilhete no hotel, voltando para trás e prometendo a Anisabel encontrá-la no barco, ao qual nunca chega. É no final da narrativa, precisamente nas últimas três páginas, que Anaisabel percebe o que lhe aconteceu e em que situação se encontra. Serge não seria, afinal, seu amante, mas um cúmplice numa rede de tráfico.

Como em Falsos Preconceitos, o romance parece, inicialmente, querer contrastar o que seria uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre, moderna, descomprometida. Como no primeiro, acaba por mostrar-se uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico de carne branca, de redes de prostituição com destino à África do Norte.

Recepção/censura de Pigalle

Seria difícil escrever sobre a temática da emigração portuguesa quando esta era proibida, quando a própria palavra “emigração” já ligava os alarmes da censura. Assim, os livros autorizados sobre o tema, antes do 25 de Abril, foram escassos, tendo, apesar disso, sobrevivido A salto (1967), também de Nita Clímaco. Afinal, ao longo do seu tempo de vigência, o Estado Novo assumiu um papel forte enquanto planificador de emigração. Em causa estavam os interesses das elites económicas do país e, para mantê-los, o regime fazia uma intervenção policial e repressiva. A violência exercida sobre quem tentava emigrar era vista como legítima, uma vez que a estes se atribuíam as causas das condições económicas do país, já que a redução da mão-de-obra traria impactos negativos à sociedade portuguesa. Tendo isto por base, o Estado Novo criou uma máquina administrativa para manter os portugueses dentro de fronteiras.

Assim, e uma vez que o romance parte da contraposição entre um Portugal tacanho e uma França moderna, podia supor-se que a política anti-emigração surtisse, também na censura literária, os seus efeitos. Para mais, a narrativa culmina num episódio em que se desvendam as intenções de Serge: levar Anaisabel para uma rede de tráfico de mulheres destinadas à prostituição, tema tabu do regime. Ainda que não tenhamos tido acesso ao relatório do censor, pode adivinhar-se, pela leitura, que seriam estes os dois temas que golpeariam a moral vigente. Afinal, mesmo olhando para os relatórios referentes a obras de outros autores, portugueses e não só, vemos que há não só um claro desejo de, também na literatura, se apresentar uma cara limpa do regime e um Portugal paradisíaco mas também um vilipêndio total por tudo o que ao sexo diz respeito.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.