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Socialismo 2008: A Propriedade é um Roubo?

Castro Caldas recolhe contributos teóricos de Proudhon, Tomás de Aquino ou Locke"E a propriedade, afinal é ou não um roubo?" é o tema da conferência do economista José Maria Castro Caldas no próximo domingo, dia 31, no Fórum de Ideias "Socialismo 2008", que se realiza na Faculdade de Psicologia do Porto. O autor tem vindo a desenvolver o tema no blog Ladrões de Bicicletas, onde continuará a publicar textos sobre o assunto.

 

Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) o homem que ficou famoso por, entre muitas outras coisas, ter escrito em 1840 que «A propriedade é um roubo!», escreveu também em 1862: "A propriedade é a maior força revolucionária que existe e se pode opor ao poder (…). Onde encontrar uma potência capaz de contrabalançar esse potência formidável do Estado? Não há outra a não ser a propriedade (…). A propriedade moderna pode ser considerada como o triunfo da liberdade (…)". Contradição? Não, explica Proudhon - a frase de 1840 deveria ser interpretada no contexto: a propriedade que era roubo era a dos terra tenentes absentistas que viviam à custa do trabalho alheio.

Se o mesmo homem ao longo de uma vida se pode achar dividido entre dois significados de propriedade tão opostos – roubo e liberdade – o que fará a sociedade? A propriedade divide, separa. Pode ser uma coisa para quem a tem e outra muito diferente para quem não a tem. E é bem possível que ela, em si mesma, possa ser diferentes coisas consoante o modo como é definida e entendida.

Fenómeno da natureza a proprieade não é certamente. Se fosse não a discutiríamos, como ninguém discute os terramotos – se devem ou não existir e, em caso afirmativo, com que violência. Mas a propriedade – o que pode ser apropriado, quem pode apropriar e em que condições – isso discutimos. Desde sempre, ou melhor, desde que a propriedade existe.

Assim como Proudhon se encontrava dividido no que diz respeito à propriedade, também os cristãos de todos os tempos tinham pelo menos dúvidas. Afinal Jesus Cristo havia pregado o despojamento das coisas materiais, prevenido os ricos de uma iminente condenação e prometendo aos pobres a salvação, embora não nesta vida terrena. Os primeiros cristãos procuraram viver no despojamento e na partilha comunitária compatíveis com esta crença.

Mas quando no século XIII surgiram as universidades e com elas os professores, clérigos na sua maioria, já o cristianismo se tinha afastado desta atitude radical face riqueza para aprender a viver num mundo que afinal dava mostras de não estar nos seus últimos dias. Estes universitários medievais entre os quais se contam grandes filósofos, alguns deles santificados pela Igreja, como Tomás de Aquino (1225-1274), estavam longe do elogio do despojamento dos primeiros cristãos.

Tomás de Aquino procurava tornar a instituição da propriedade compatível com a moral cristã. Os argumentos a favor do direito de propriedade que formulou são muitas vezes evocados nos nossos dias: (a) a propriedade deve ser necessariamente privada porque as pessoas têm mais cuidado com o que é seu do que com o que é de todos; a sociedade fica a ganhar se cada um cuidar bem da sua parte; (b) a propriedade privada é essencial à ordem social - uma sociedade em que “tudo é de todos” e não há distinção entre o “meu” e o “teu”, é uma sociedade em que o conflito surge logo que a escassez se manifesta.1

Mas para Aquino, embora a propriedade tivesse de ser privada por estas razões, os frutos da propriedade (os frutos da terra) eram comuns e deviam ser partilhados. O excedente devia ser posto à disposição dos que dele necessitam. Isto tanto poderia ser feito através dádiva beneficente como através do comércio.

Tomás de Aquino não justifica a propriedade a partir de um qualquer direito primordial do indivíduo, mas antes da (suposta) vantagem que a sociedade dela retira. E quando a propriedade privada é legitimada a partir da vantagem que a sociedade retira desta instituição, a implicação não pode deixar de ser a de que o direito de propriedade está sujeito à prestação de um serviço útil à sociedade e acarreta obrigações; neste caso pelo menos a obrigação de cuidar bem do que é seu.

Serve assim Tomás de Aquino para relembrar um ponto de vista que parece ter sido esquecido: (a) a terra e os seus frutos foram uma dádiva do criador à humanidade no seu conjunto e devem ser repartidos; (b) o proprietário é quando muito um zelador; (c) o direito de propriedade envolve sempre obrigações e está sujeito ao cumprimento dessas obrigações.

Os argumentos são Aristotélicos (Aristóteles, Política, Lisboa: Vega, 1998, pág. 109): “Quanto mais uma coisa é comum a um maior número, menos cuidado recebe. Cada um preocupa-se sobretudo com o que é seu; quanto ao que é comum preocupa-se menos, ou apenas na medida do seu interesse particular. Aliás, desleixa-se ainda mais ao pensar que outros cuidam dessas coisas.” E ainda (Op. Cit. pág. 109): “Por muito belo que pareça, que todos chamem ‘meu’ ao mesmo objecto, é impossível, e não conduz, de modo algum à concórdia.”

Para John Locke (1632-1704) – a venerável referência comum de todos os liberalismos – a propriedade, ou pelo menos a propriedade legítima, era uma extensão natural do corpo. Pode parecer estranho, mas consideremos o argumento de Locke no Capitulo V do Segundo Tratado sobre o Governo:

1. Deus deu efectivamente a terra e os frutos que ela naturalmente produz à humanidade no seu conjunto e «originariamente, ninguém tem um domínio privado de algum deles que exclua o resto da humanidade»;

2. No entanto, tendo os frutos da natureza sido dados para o uso do homem, eles têm de ser apropriados antes que possam ser usados: «o fruto ou o veado que alimenta o Índio selvagem, que não conhece cercas e é ainda um detentor da terra em comunidade, deve ser dele – isto é, uma parte dele a que ninguém mais tem direito, antes que possa ser bom para si enquanto suporte à vida»;

3. Todo «o homem» é proprietário da sua pessoa. Por extensão, «podemos dizer que o ‘labor’ do seu corpo e o ‘trabalho’ das suas mãos são apropriadamente seus». Em consequência, tudo o que «o homem» retira da Natureza, toda a parcela da dádiva de Deus à humanidade em colectivo a que ele «mistura» o seu trabalho, transforma-se em propriedade sua.

O trabalho é então para Locke o que estabelece uma distinção entre o que é comum e aquilo a que, com propriedade, chamamos nosso: a maçã na árvore que ninguem semeou é de todos, a maça que colhi dessa árvore com o meu esforço é minha e ninguém a pode reclamar. Esta é para Locke «a lei da Natureza para a origem da propriedade».

Mas… se a colheita dos frutos é fundamento de um direito ao uso privado desses frutos, então qualquer um poderia açambarcar as dádivas de Deus para si, à sua vontade. «Não é assim», responde Locke: «A mesma lei da Natureza que deste modo nos dá a propriedade, limita também, doutro modo, a propriedade». Deus deu-nos os frutos da terra para que os gozemos, não para que os desperdicemos. Tudo o que ultrapassa a nossa capacidade de uso e se transforma em desperdício está para lá da nossa legítima porção e pertence a outros.

Isto já não é pouco. Mas Locke ainda não terminou.

O que até aqui respigamos de Locke refere-se ao fundamento do direito de uso privado dos frutos da terra e não ao do direito à propriedade da terra em si mesma. Agora há um problema: se a terra não é fruto do trabalho de ninguém, em que princípio ou lei da Natureza se funda a sua apropriação? Locke pensava que o princípio era o mesmo: a terra que legitimamente pode ser apropriada seria tanta quanta um homem pode lavrar, cultivar e melhorar com o seu trabalho. O trabalho seria o que cerca a quinta e a separa do baldio.

Na origem, pensava Locke, o acto de lavrar e cultivar a terra, tornando-a deste modo em propriedade vedada ao acesso de outros, não prejudicava aqueles a quem o acesso passava a estar vedado e não dependia, portanto, do consentimento da comunidade. Como assim? No princípio, apesar da apropriação, haveria sempre terra bastante e de boa qualidade para os outros. Quem objecta a que alguém retire alguma água de uma fonte que não cessa de jorrar?

Na origem, portanto, a propriedade não era causa de desarmonia e conflito e, pensava Locke, continuaria ainda a não o ser, não tivesse ocorrido «a invenção do dinheiro e o acordo tácito dos homens em a ele atribuir valor». Sem dinheiro, explica Locke, é difícil acumular o excedente agrícola. Nessas condições o que não é usado transforma-se em desperdício. Mas com dinheiro torna-se possível vender o excedente e acumular o seu valor numa forma monetária que por sua vez permite aceder a outros bens, inclusive a mais terra. Conclusão:

«… no princípio todo o mundo era América, ainda mais do que é agora; porque em nenhum lugar nada que se assemelhasse a dinheiro era conhecido. Encontre-se algo que tenha o uso e o valor do dinheiro entre vizinhos e veremos o mesmo homem agora a começar a alargar as suas possessões».

A propriedade não limitada pelas capacidades de trabalho e de uso seria então uma consequência do dinheiro. A escassez de terra livre e o conflito em torno da posse do bem escasso, também. Aqui Locke é prudente, dando lugar para diversas interpretações, mas mesmo assim não é fácil levar Locke a legitimar a propriedade individual sem limites – este tipo de propriedade resultaria do dinheiro, de uma instituição humana, e não de uma «lei natural».

Como é fácil de imaginar Locke não podia adivinhar que em vez de encerrar o debate sobre a legitimidade da propriedade privada, estava, por assim dizer, a inflamá-lo. No entanto, foi isso precisamente o que acabou por acontecer. Se o corpo é sagrado e ninguém pode cedê-lo em contrato para uso ou posse de outrem e se, por extensão, os frutos do trabalho legitimamente pertencem a quem os produziu, como justificar que parte dos frutos do trabalho de quem lavra a terra ou trabalha na oficina que um outro diz ser sua, passem a pertencer a quem se diz proprietário e não a quem os produziu?

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