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"Quem continua a mandar são as companhias de seguros privadas"

O cineasta e activista Michael Moore diz à Democracy Now que não pensa que Obama "realmente acredite em cuidados de saúde universais geridos por nós, o povo." Entrevista incluída no Dossier do Esquerda.net: EUA: lei de reforma da saúde em debate.

 "Quem continua a mandar são as companhias de seguros privadas" O cineasta e activista Michael Moore diz à Democracy Now que não pensa que Obama "realmente acredite em cuidados de saúde universais geridos por nós, o povo." Entrevista incluída no Dossier do Esquerda.net: EUA: lei de reforma da saúde em debate.

Hoje está connosco o autor de "Sicko", o premiado realizador Michael Moore. O seu último filme chama-se "Capitalismo: uma história de amor", e realizou muitos outros. Falámos com ele na noite de ontem e começámos por perguntar qual era a sua reacção à votação da reforma do sistema de saúde.

Tenho falado muito sobre isso. Esta lei nunca foi sobre cuidados de saúde universais. Faz algumas coisas boas que poderiam ter sido feitas em qualquer altura, como o fim da regra de condições pré-existentes para as crianças. Não acaba com elas, no caso dos adultos, por quatro anos, assim que podem-se prever mais provavelmente 20 mil a 40 mil mortes nesse período, de pessoas que noutras condições poderiam receber ajuda se realmente tivesse deixado de existir essa regra das condições pré-existentes para todos os cidadãos. Mas seis meses depois de a lei ser assinada por Obama, as crianças poderão ter a cobertura de companhias de seguros privadas e em busca de lucros.

Não quero parecer cínico, porque compreendo a importância desta votação. Certamente que se a lei tivesse sido derrotada e os republicanos vencessem, eu diria que isso tornaria provavelmente impossível que o presidente Obama conseguisse aprovar mais fosse o que fosse durante o resto da vigência deste Congresso. Não seria boa ideia esta paralisia.

 Mas a questão mais geral é que quem continua a mandar são as companhias de seguros privadas. Elas é que vão continuar com a faca e o queijo na mão. Pior: receberam outra enorme esmola do governo para garantir os seus clientes. É realmente muito doido quando se pensa bem nisso. Imaginem o Congresso aprovando uma lei que obrigasse toda a gente a comprar - sei lá, qualquer produto - ou a ver o meu próximo filme. Uma lei que dissesse: agora têm de comprar um DVD de cada filme do Michael Moore. Uau! Não seria má ideia! Não sei por que estão tão preocupadas, porque a lei vai encher ainda mais os bolsos das seguradoras.

Michael, essa questão da obrigatoriedade, força-se as pessoas a comprarem um produto que muitos vêem como defeituoso, que se demonstrou ser defeituoso por muitos anos. Mas também, na questão do aborto, as pessoas são forçadas a comprar um produto que não cobre um procedimento médico legal. Essa também é uma questão importante...

Sim, e não é só isso. Compreendo por que o presidente Obama teve de fazer a sua declaração para conseguir o apoio dos democratas que defendem o direito-à-vida, liderados pelo meu congressista aqui no Michigan, Bart Stupak, porque ele tinha de fazê-los entrar no barco. Mas é triste ver um presidente, como Obama, do Partido Democrata, a apoiar a emenda Hyde, que, acreditem em mim, será vista pela história como uma das práticas discriminatórias contra as mulheres na nossa sociedade.

Isto é, evidentemente, toda uma outra questão, de que sempre tivemos medo. Porque até agora há uma decisão do Supremo Tribunal de cinco a quatro. Mais um voto, e isso pode significar o fim do aborto legal neste país. Por isso acho que os liberais, as pessoas de esquerda, ficam às vezes um pouco temerosas de ir demasiado longe, mas, francamente, se não formos nós, quem será? Se não batemos o pé em relação a isto, se não dissermos que isto está errado, se não falarmos contra, então quem vai fazê-lo?

Mas, a longo prazo, pelo menos 15 milhões de americanos ainda não vão ter seguro de saúde. Como disse, aqueles que tiverem direito vão ser forçados a comprar um produto defeituoso. E confie no que digo: as companhias seguradoras não vão entrar nisto tranquilamente, mesmo que percam. Vão arranjar formas de enganar o sistema, para contorná-lo e fazer subir os prémios.

Não vai ser tão fácil como parece. "Ah você tem uma condição pré-existente. Não há problema." Bem, não vai ser "sem problemas". Os chamados controlos que a lei prevê sobre as companhias são Mickey Mouse. Por exemplo, se eles te negarem assistência de saúde - vamos dizer a Aetna não te dá seguros de saúde porque tens uma condição pré-existente, e tu dizes: "Esperem um minuto: isso é contra a lei!" eles vão dizer: "Pois, processem-nos". Porque sabem qual é a multa por negar seguro a alguém que tem uma condição pré-existente? Cem dólares ao dia. Então se é a Aetna que tem uma pessoa que talvez precise de uma operação de cem mil dólares, que faria? Pagaria a operação de cem mil dólares porque a lei manda? Ou viola a lei e apenas recebe uma multa de cem dólares por dia? Porque, vejam bem, depois de um ano serão 36 mil dólares versus uma operação de cem mil dólares. Qual será a escolha da Aetna? Claro que eles podem ficar à espera que num ano a pessoa, sem a operação, morra, e por isso não têm de se preocupar em gastar mais dinheiro com um médico ou um hospital.

Deixe-me perguntar sobre a estratégia da Casa Branca nesta questão. Vimos nas semanas finais muita pressão sobre os progressistas, especialmente Dennis Kucinich. Ele apanhou o Air Force One com Obama e foi forçado - no dia seguinte mudou de sentido de voto. Bem, não foi forçado, mas no fim de contas foi o que acabou por decidir. Não parece ter havido qualquer consideração, por parte da Casa Branca, do presidente Obama, pela opção pública durante os meses deste debate. Disseram que a apoiavam, mas nada fizeram activamente para isso. E não vimos o mesmo tipo de pressão sobre pessoas como Bart Stupak. Ele acabou por votar a favor, mas depois de conseguir concessões, Obama assinou a sua ordem executiva. Que acha da forma como o presidente Obama conduziu este debate?

Não acho que ele alguma vez se tenha preocupado com a opção pública. Não penso que ele realmente acredite em cuidados de saúde universais geridos por nós, o povo. Foi ele quem mais recebeu dinheiro da indústria de saúde no Senado e quando se candidatou a presidente, por isso não me surpreende que ele pouco interesse tenha tido por isso.

Obama, agora, é o nosso - é o gajo diferente dos últimos oito anos de Bush e Cheney. Isto é um forte apoio a ele. Quero dizer, desculpem, sinto-me tão desiludido. E sento-me aqui diante desta câmara e tento soar feliz e positivo e optimista e tudo isso, porque as pessoas estão tão cheias de desespero. Mas desculpem, eu também estou cheio desse desespero.

E penso que ele realmente não vai assumir os seus poderes como devia. Não vai realmente pôr a mão sobre os bancos e Wall Street. Ele fez um acordo com a indústria farmacêutica que a deixou completamente de fora. Não foram nem tocados por esta lei, seguiram o seu feliz caminho caloteando o público em milhares de milhões todos os anos.

Por isso, desculpem, na minha vida senti que às vezes é pior ter a versão mais gentil da mesma coisa má, do que a própria coisa má; com esta podemos lidar, porque pelo menos sabemos o que é. Mas se temos, como é frequentemente o caso dos democratas, a máscara que parece simpática, parece - uau, parece um de nós. Diz o mesmo que nós, e sente da mesma maneira, e de vez em quando faz coisas muito boas. Quero dizer, estão prestes a deixar de mentir sobre onde está o nível de pobreza neste país. A administração Obama vai pôr a barra onde ela realmente deveria estar. Essas pequenas coisas que ouvimos todas as semanas fazem pensar: é muito melhor que Bush e Cheney.

Mas se olharmos para trás, cá estamos nós na primeira semana do oitavo ano da guerra do Iraque, da guerra do Afeganistão, que Obama decidiu tornar a sua guerra, e uma muito, muito fraca lei de regulamentação bancária que Chris Dod propôs, que acredito que ontem foi aprovada nalgum comité. Não li as notícias ontem, mas não vai fazer nada que realmente ponha rédeas em Wall Street ou nos bancos da forma que devia.

Veja aqui a entrevista na íntegra (em inglês)

Tradução de Luis Leiria

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