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O Irão na mira dos falcões

f_16.jpgDesde 2003, quando os EUA se lançaram na desastrosa guerra de agressão no Iraque, a invasão do Irão está na ordem do dia. No início da guerra responsáveis de Washington afirmavam que se tratava de uma primeira fase, a que se seguiria a Síria e o Irão. Inscrevia-se numa estratégia regional de reajustamento do mosaico político do Médio Oriente, favorável a Israel, eliminando regimes que lhe são mais hostis e conferindo-lhe liberdade de acção para inviabilizar um Estado Palestiniano soberano nas fronteiras estabelecidas pelo plano de partilha da ONU.

Por Pedro de Pezarat Correia, publicado originalmente no site da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial do Iraque

Deve ter-se em conta que o lobby judaico nos EUA tem tal influência que, bem pode dizer-se, a estratégia da Casa Branca no Médio Oriente é comandada pelo Estado sionista. E isto não é uma mera imagem retórica, pois Jerusalém põe Washington, muitas vezes, perante factos consumados. A excepção, que afinal confirma a regra, foi a crise do Canal do Suez em 1956, mas então o contexto internacional, bipolar e em plena guerra fria, impunha outros condicionamentos.

O quadro actual da pressão militar sobre Teerão tem início em 1979, com a substituição da monarquia persa do Xá Reza Pahlevi pela República Islâmica do Irão. A Pérsia era o principal aliado do ocidente e dos EUA no Golfo Pérsico, pilar da Organização do Tratado do Médio Oriente (METO), mais conhecido por Pacto de Bagdad que, com a Turquia, Iraque e Paquistão, prolongava no espaço decisivo do Médio Oriente a cintura de contenção, cuja componente europeia era a OTAN, fulcral na estratégia dos EUA face à URSS na guerra fria. Em 1959 o Pacto de Bagdad já sofrera um revés com a saída do Iraque, passando a Organização do Tratado Central (CENTO), mas o golpe de misericórdia foi-lhe dado pela queda do regime do Xá. O maior aliado regional dos EUA passava a ser o maior adversário. No entanto a ruptura do Irão com o ocidente não significou a sua passagem para o bloco soviético, pelo contrário, adoptou uma neutralidade hostil a ambos os blocos o que, até certo ponto, atenuou os danos, mas não impediu que Teerão se tornasse, para Washington, um alvo a abater. A humilhação dos cidadãos norte-americanos feitos reféns na sua embaixada de Teerão durante 14 meses e da frustrada intervenção armada para os resgatar em Abril de 1980, exigia uma reparação.

Este contencioso, aqui tão levemente esboçado, assume nova dimensão com a intervenção dos EUA no Iraque. Mas esta, ao contrário do projecto de Bush, em vez de favorecer o ataque ao Irão, veio travá-lo. De resto - é um dos maiores paradoxos da agressão ao Iraque -, todos os objectivos que a Casa Branca se propôs alcançar saíram frustrados e todos os factores de conflito, em vez de solucionados, agravaram-se: caos no Iraque tornado um Estado falhado; escalada do terrorismo e instalação da Al Qaeda no Médio Oriente; agudização do conflito na Palestina; radicalização dos fundamentalismos; questão curda sem solução; explosão dos preços do crude; emergência do Irão xiita como potência regional; risco da proliferação nuclear. Creio não haver dúvidas de que, se a guerra no Iraque tivesse corrido bem aos EUA, o seu prolongamento à Síria e Irão não teriam tardado. Mas tudo correu mal e os EUA, fragilizados, desacreditados, parecem destinados a sair do Iraque com o passivo de um enorme desastre estratégico. É óbvio que uma escalada no Irão será deitar óleo para a fogueira. Nada disto impede, porém, que os falcões dos EUA continuem a alimentar a ideia da guerra ao Irão. O seu chefe de fila é o vice-presidente Dick Cheney, das mais sinistras figuras da pouco recomendável corte de George W. Bush. Daí a interrogação: encerrará Bush o seu mandato com numa nova e, provavelmente, ainda mais desastrosa aventura? Se sim, como?

A imprensa dá frequente notícia de planos de contingência, no Pentágono, para a eventual intervenção armada no Irão. Não surpreende e não é isso que denuncia a iminência de um ataque. Os planos de contingência para fazer face a eventuais emergências existem em todos os estados-maiores, prontos a serem actualizados quando aumentam os graus de probabilidade.

Mais preocupante é que há sinais de ter começado a preparação da opinião pública, quer da nacional quer da internacional, para fazer passar a mensagem da inevitabilidade da guerra. São os clássicos e pouco originais condimentos, um remake da campanha que precedeu a agressão ao Iraque: diabolização do outro; provocações cuja responsabilidade é sempre do outro; denúncia de violação dos direitos humanos; invocação da prevenção contra ataques terroristas; perigo de armas de destruição maciça.

Entretanto os EUA, numa clara manobra de envolvimento, têm vindo a montar um cerrado cerco ao Irão, não numa estratégia de contenção como fizeram com a URSS, mas para instalação de uma rede de potenciais bases de ataque em todos os azimutes. Quem se debruçar sobre um mapa da região do Golfo Pérsico constatará que o conjunto Irão-Síria está, de facto, cercado pelos EUA, através de Estados onde estes têm forças militares, ou que são seus aliados, ou com os quais tem protocolos de cooperação militar: a ocidente o Iraque e a Turquia; a oriente o Paquistão e o Afeganistão; a norte a Geórgia, o Azerbaijão e o Turquemenistão; a sul, no Índico, as suas poderosas esquadras, agora reforçadas para a guerra no Iraque. Numa segunda linha, o cerco ganha profundidade: a oeste com Israel, Arábia Saudita e petromonarquias do Golfo; a leste com a Índia; a norte com o Uzbequistão. É um cerco perfeito e sólido, de que só se exclui a Arménia, a norte, pela sua especial relação com a Rússia, mas demasiado pequena e com suficientes problemas com os seus vizinhos, Geórgia, Azerbaijão e Turquia, para estar a envolver-se em apoios ao Irão.

Os pretextos, reais ou virtuais, para o ataque ao Irão, estão anunciados: apoio à resistência no Iraque e aos chamados movimentos "terroristas" Hezbollah, no Líbano e Hamas, na Palestina; ameaças a Israel; ligação à Al Qaeda; projecto nuclear. É, ponto por ponto, um Iraque II. A questão do Irão nuclear e da hipocrisia com que as potências possuidoras de armas nucleares a enfrentam, já tratei em anterior artigo neste site em 7 de Fevereiro de 2006.

Um problema que se coloca aos apologistas da guerra é o velho dilema entre a opção aérea, apenas bombardeamentos através de aviões e mísseis, ou também invasão terrestre para derrubar a República Islâmica. A estratégia aérea é possível, os EUA e seus aliados dispõem de meios suficientes, de bases adequadas e, provavelmente, com mais ou menos baixas, poderão neutralizar as defesas anti-aéreas iranianas e, depois, destruir metodicamente os objectivos com interesse estratégico, militares ou não, com os inevitáveis danos colaterais. Só que, a experiência o tem demonstrado, a estratégia aérea desgasta, mas não decide as guerras. E a estratégia de cerco próximo também tem as suas vulnerabilidades, pois expõe alvos à retaliação. O primeiro golpe não destruirá, de imediato, todo o potencial inimigo e o Irão disporá, certamente, de tempo e meios para retaliar sobre alvos norte-americanos no Golfo, sobre a Arábia Saudita, sobre o Afeganistão, sobre Israel. Acresce que o Irão conta com aliados operacionais experimentados na Palestina, no Líbano, no Iraque.

Podendo ser os custos de uma estratégia aérea, para os EUA e seus aliados, excessivos, teriam, para os minimizar e impedir o seu prolongamento no tempo, de recorrer à invasão terrestre, derrubar o Estado, ocupar o terreno e destruir o aparelho militar. Mais uma vez um Iraque II, mas em condições muito mais desfavoráveis. Se no Iraque a resistência popular e o terrorismo internacional tiveram os efeitos que se conhecem, no Irão, muito mais extenso, com um terreno muito mais difícil, com menos divisões étnicas e religiosas, é previsível que esses efeitos sejam muito mais devastadores. Acresce que o Irão saiu fortalecido com a invasão norte-americana do Iraque, porque ruiu a cintura sunita que o envolvia, reforçou os laços ao xiismo iraquiano e se transformou numa potência regional sem a qual não há soluções para os problemas do Médio Oriente. Ao invés, o fracasso do Iraque tirou iniciativa intervencionista aos EUA, quer em apoios externos quer no apoio interno, agravado pelo período eleitoral em que o factor guerra se tornou determinante. Não se prevê que Washington consiga apoio no CS da ONU para uma invasão do Irão e não tem condições para repetir o desafio à comunidade internacional duma decisão unilateral. E, acima de tudo, o exército norte-americano, segundo se lê, está exausto nos seus meios humanos e afectado psicologicamente em todos os escalões, mesmo nos mais elevados, com opiniões divididas e a confiança no poder político fortemente abalada. Dificilmente "este" exército norte-americano poderá ser empenhado numa nova aventura no Irão.

Não significa isto excessivo optimismo ou convicção de que os EUA, pura e simplesmente, não intervirão no Irão. Infelizmente Washington, particularmente a administração George W. Bush, têm dado provas de voluntarismo irresponsável envolvendo-se em empresas tragicamente falhadas. Recentemente na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Outubro 2007, Selig S. Harrison dava conta da preparação da guerra pelos ultras, usando as antigas milícias de Saddam Hussein em acções de espionagem no Irão e apoiando o Conselho Nacional de Resistência do Irão de Alireza Jaffarzadeh, a versão iraniana do Congresso Nacional Iraquiano de Ahmed Chalabi, que tão nefastamente influenciou a invasão do Iraque.

Mas as desvantagens e as condições desfavoráveis parecem sobrepor-se às que recomendam a invasão. Um artigo na Foreign Affairs de Março/Abril 2007, revista de referência dos meios intelectuais estratégicos dos EUA, "Time for détente with Iran", de Ray Takeyh, avisa, lucidamente, que o Médio Oriente mudou com o desastre do Iraque e considera que Washington tem que optar por uma détente com o Irão, porque não tem soluções militares realistas.

É claro que pode sempre haver o recurso ao argumento final, a arma nuclear. Apesar de a sua argumentação para preservar o apartheid nuclear incidir no risco de a arma nuclear poder cair em mãos pouco convenientes, a verdade é que, até hoje, os EUA foram a única potência a utilizá-la no teatro de guerra. Mas recuso-me, sequer, a equacionar esta hipótese, porque sai do campo da racionalidade. Apesar das reservas que a política de Bush justifica, esperemos que o bom-senso prevaleça.

4 de Novembro de 2007

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