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Iraque em números

iraque_explosao.jpgNeste artigo de Tom Engelhardt para a revista americana The Nation, faz-se uma tentativa de contar a história do Iraque através de uma extensa recolha de estatísticas. De números. Como diz o autor, muitas vezes os números desumanizam; mas, às vezes, os números são a melhor forma de contar uma história necessária. Como avisou o chefe da Liga Árabe, Amr Mussa, em 2004: "Os portões do Inferno abriram-se no Iraque."

 

Iraque em números

Por Tom Engelhardt, The Nation, 2 de Julho de 2007

Às vezes, os números podem retirar aos seres humanos quase tudo o que nos faz quem somos. Os números podem silenciar a dor, apagar o amor, obliterar a emoção, e desfazer a nossa individualidade. Mas, por vezes, os números também podem contar uma história necessária, e de uma forma única.

Em Janeiro, o Presidente Bush anunciou o seu plano de "escalada" de meios e pessoal militar no Iraque, a que ele chamou "uma nova via em frente". Era tudo, se pensarmos bem, sobre os números. Desde então, 28.500 novos soldados americanos entraram naquele país, concentrando-se em e à volta de Bagdad; e, de acordo com o Washington Post, entraram também, pela calada, mercenários privados armados - armas contratadas, se quiserem - que libertam as tropas de tarefas militares mundanas, desde guardar comboios a guardar enviados. Entretanto, aumentaram também no Iraque outros números significativos.

Agora, os americanos estão, em teoria, à espera que o comandante das forças dos EUA no Iraque, o general David Petraeus, relate o "progresso" da estratégia de escalada do Presidente, ao Congresso, em Setembro. Mas, na verdade, não há porque esperar por Setembro. Um relatório interno - "o Iraque em números" - pode ser preparado agora (tal como podia ter sido preparado há um mês, ou no ano passado). A trajectória do horror no Iraque há muito que é clara; o facto de que é o exército americano o motor do cataclismo iraquiano não é mais claro agora do que há alguns anos. Aqui está, portanto, a minha própria versão adiantada do "relatório de Setembro".

Um aviso em relação aos números: no caos sangrento que é o Iraque, enquanto dezenas de milhares morrem os são feridos, enquanto milhões fogem ou são expulsos, e enquanto a influência do governo do Primeiro Ministro Nouri al-Maliki se encontra quase sempre confinada às quatro milhas quadradas fortificadas da Zona Verde da capital iraquiana, os números, mesmo quando chovem dessa terra que sangra, são eternamente uma adivinha. Não há possibilidade de a maior parte deles serem exactos. São, na melhor das hipóteses, um conjunto de notas aproximadas num pesadelo que fica além da contabilização.

Aqui fica, apesar disto, uma tentativa de contar a história do Iraque com estes números:

O Iraque é actualmente conhecido como o número 1 - no que toca a ser o campo de treino ideal para qualquer jihadista do planeta. "Se o Afeganistão foi uma caixa de Pandora que, quando aberta, criou problemas em muitos países, o Iraque é uma caixa muito maior, e o que está lá dentro é muito mais perigoso," comenta Mohammed al-Masri, investigador no Centro para Estudos Estratégicos em Amman. Os analistas da CIA previram exactamente isto num relatório de Maio de 2005 revelado anonimamente à imprensa. ("Um novo estudo confidencial da CIA declara que o Iraque pode vir a ser um campo de treino ainda mais eficaz para extremistas islâmicos do que era o Afeganistão nos primeiros tempos da Al-Quaeda, porque serve como um laboratório real para o combate urbano.")

O Iraque é o número 2: está neste momento em segundo lugar na classificação dos países mais instáveis do mundo, à frente de nações destruídas pela guerra e com níveis de pobreza extremos como a Somália, o Zimbabwe, o Congo e a Coreia do Norte, de acordo com o Índice de Estado falhados de 2007, emitido recentemente pela revista do Fundo pela paz e Política Internacional. (O Afeganistão, o outro lado da nossa pequena guerra, está em oitavo.) No ano passado e no outro antes disso, o Iraque estava em quarto lugar na lista. No próximo ano, pode escalar para o primeiro.

Número de tropas americanas no Iraque em Junho de 2007: aproximadamente 156.000.

Número de tropas americanas no Iraque no 1º de Maio de 2003, o dia em que o Presidente Bush declarou "acabadas" as "grandes operações de combate" naquele país: aproximadamente 130.000.

Número de insurrectos sunitas no Iraque em Maio de 2007: pelo menos 100.000, de acordo com o correspondente do Asia Times, Pepe Escobar, na sua última visita ao país.

Militares americanos mortos nos meses da escalada, de 1 de Fevereiro a 26 de Junho de 2007: 481

Militares americanos mortos de Fevereiro a Junho de 2006: 292

Número de mercenários mortos nos primeiros três meses de 2007: pelo menos 146, uma escalada significativa em relação aos anos anteriores. (As mortes de mercenários, por vezes, não são relatadas, por isso estes números estão provavelmente incompletos.)

Número de tropas americanas que o Secretário Adjunto da Defesa Paul Wolfowitz e outros estrategas civis do Pentágono estavam convencidos que estariam no Iraque em Agosto de 2003, quatro meses depois da queda de Bagdad: 30.000 a 40.000, de acordo com o jornalista do Washington Post Tom Ricks, no seu best-seller, Fiasco.

Número de "privados contratados" armados, neste momento, no Iraque: pelo menos 20.000 a 30.000, de acordo com o Washington Post. (Jeremy Scahill, autor do best-seller intitulado Blackwater, dá um número de todos os privados contratados para o Iraque: 126.000)

Percentagem de mortes americanas por bombas de beira de estrada (IEDs): 70,9 por cento em Maio de 2005; 35 por cento em Fevereiro, quando começava a escalada.

Percentagem de ataques a comboios de abastecimento americanos (guardados por privados contratados) registados: 14,7 por cento em 2007 (até 10 de Maio), 9,1 por cento em 2006; 5,4 por cento em 2005.

Percentagem de Bagdad não controlada pelas forças de segurança americanas (e iraquianas), quatro meses depois de iniciada a escalada: 60 por cento, de acordo com o exército dos EUA.

Número de ataques à Zona Verde, o coração fortificado de Bagdad, onde está a nascer a nova embaixada americana de 600 milhões de dólares e onde reside maioritariamente o governo iraquiano: mais de 80 entre Março e o começo de Junho de 2007, de acordo com um relatório das Nações Unidas. (Estes ataques, por morteiro ou rocket, vindos da "pacificada" Zona Vermelha de Bagdad, têm aumentado e ocorrem agora quase diariamente.)

Quantidade de pessoal da embaixada em Bagdad: mais de 1.000 americanos e 4.000 nacionais de países do terceiro mundo.

Pessoal que o embaixador Ryan Cocker considera apropriado para o trabalho "diplomático": o embaixador enviou recentemente "um pedido urgente" à Secretária de Estado Condoleezza Rice, de mais pessoal. "As pessoas aqui são heróicas", escreveu. "preciso de mais pessoas, e essa é a questão, não que as pessoas que estão aqui não devam estar, ou que não consigam fazer o trabalho." De acordo com o Washington Post, a embaixada em Bagdad, que antes contava com quinze oficiais políticos, terá mais onze; o pessoal económico vai passar de 9 para 21.

Ataques aéreos dos EUA durante os meses de escalada: os aviões da Força Aérea largam bombas a mais do dobro da frequência do ano passado, de acordo com a agência de notícias A.P. "Missões de apoio próximo" aumentaram 30 a 40 por cento. E esta escalada no céu parece, segundo relatos e notícias recentes, estar ainda a subir.

Número de anos que o general Petraeus, comandante da operação da escalada, prevê que os EUA se demorem no Iraque em operações de contra-insurgência: 9 a 10 anos.

Número de anos que as tropas dos EUA poderão ter de passar aquartelados nas bases americanas no Iraque: 54, de acordo com o novo "modelo coreano", agora a ser estudado para este país.

Número de anos necessários para que as forças de segurança iraquianas tenham capacidade de tomar o controlo: "um par de anos", de acordo com o brigadeiro general dos EUA Dana Pittard, comandante do Grupo de Assistência do Iraque.

Quantidade de dinheiro de "reconstrução" investido no principal interesse da CIA no Iraque, o Serviço Nacional de inteligência Iraquiano: 3 mil milhões de dólares, segundo o correspondente do Asia Times Pepe Escobar.

Número de iraquianos que fugiram do país desde 2003: estima-se que seja entre 2 milhões e 2,2 milhões, ou quase um em cada dez iraquianos. De acordo com o jornalista independente Dahr Jamail, pelo menos 50.000 mais refugiados deixam o país todos os meses.

Número de refugiados iraquianos aceites nos EUA: menos de 500. (Sob pressão internacional e do Congresso, a administração Bush concordou finalmente em aceitar mais 7.000 iraquianos até ao fim do ano.)

Número de iraquianos que são refugiados no seu próprio país, desde 2003: pelo menos 1,9 milhões, de acordo com as Nações Unidas.

Percentagem de refugiados, internos e externos, com menos de doze anos: 55 por cento, de acordo com o Presidente da Sociedade Crescente Vermelho.

Percentagem de crianças de Bagdad, dos três aos dez anos, expostas a um evento extremamente traumático nos últimos dois anos: 47 por cento, de acordo com um estudo feito pela Organização Mundial de Saúde a 600 crianças. 14 por cento mostraram sinais de stress pós-traumático. Noutro estudo de 1.090 adolescentes em Mosul, o número chegou aos 30 por cento.

Número de médicos iraquianos que fugiram do país desde 2003: estima-se que sejam 12.000 dos 34.000 médicos registados, de acordo com a Associação Médica Iraquiana. A Associação relata que outros 2.000 médicos foram mortos nestes anos.

Número de refugiados iraquianos criados desde Janeiro de 2007: estima-se que sejam 250.000.

Percentagem de iraquianos a viver com menos de um dólar por dia: 54 por cento, de acordo com as Nações Unidas.

Percentagem de iraquianos que não têm acesso regular a água potável: 70 por cento, de acordo com a OMS. (80 por cento "não têm uma rede de esgotos eficiente")

Taxa de malnutrição crónica infantil: 21 por cento, de acordo com a OMS.

Número de iraquianos detidos em prisões americanas no seu próprio país: 17.000 em Março de 2007, quase 20.000 em Maio do mesmo ano, e em escalada.

Número médio, por dia, de iraquianos que morreram de forma violenta, em 2006: 100 - e este é, sem dúvida, uma estimativa por baixo, já que nem todas as mortes são contadas.

Número de iraquianos que morreram de forma violenta desde Janeiro de 2007: 15.000 - mais uma vez, certamente uma contagem pouco fiável.

Percentagem de feridos de forma grave que não sobrevivem, baseada no cálculo acima: quase 70 por cento, de acordo com a OMS.

Número de professores universitários que foram mortos desde 2003: mais de 200, de acordo com o Ministério da Educação Superior iraquiano.

Percentagem de americanos que apoiam as acções do Presidente no Iraque: 23 por cento, de acordo com a última sondagem pós-escalada da Newsweek. A taxa de aprovação geral do Presidente ficou pelos 26 por cento, só três pontos acima de apenas um presidente, Richard Nixon no pior do escândalo Watergate, e os piores números de Bush estão a dirigir-se para esse território. Na última, agora com duas semanas, sondagem da NBC/ Wall Street Journal, 10 por cento dos americanos pensam que a "escalada" melhorou as coisas no Iraque, 54 por cento acham que piorou.

A pergunta é: que melhor palavra descreve a situação que estes números iraquianos apontam? A resposta seri provavelmente: essa palavra não existe. "Genocídio" está esgotado e não se aplica. "Guerra civil", que passa toda a culpa aos iraquianos (retirando os americanos de um país que as tropas ainda não começaram a abandonar), não cobre sequer levemente a questão.

Se alguma coisa descreve a carnificina e caos do que foi a nação do Iraque, talvez seja um comentário do chefe da Liga Árabe, Amr Mussa, em 2004. Ele avisou: "Os portões do Inferno abriram-se no Iraque." No mínimo, os "portões do Inferno" devem agora estar a algumas milhas atrás de nós, na autoestrada meio destruída e bem minada da vida iraquiana. Quem sabe que IEDs estão no caminho adiante? Estamos, afinal, no submundo.

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