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Hungria 1956

REVOLUÇÃO DESFIGURADA
hungria_tanksA Hungria celebrou oficialmente, no dia 23 de Outubro, o 50º aniversário da revolução que reporia efemeramente no poder o comunista reformador Imre Nagy. Foi uma revolução espontânea que começou na juventude e alcançou a classe trabalhadora, que atingiu um alto nível de organização nos conselhos operários. Num momento em que um primeiro-ministro que reconheceu ter mentido para ganhar as eleições é combatido nas ruas pela oposição de direita, vale a pena relembrar os passos desta revolução que, há 50 anos, e apesar de ter sido esmagada, iria sinalizar um momento de viragem na história do século XX
 

Hungria 1956

REVOLUÇÃO DESFIGURADA

 Charles-André Udry

O jornal Le Monde de 22 de Junho de 2006 escreve: "Vindo de Viena, onde assistiu à cimeira euro-americana, George W. Bush celebra, na Hungria, o 50º aniversário da sublevação de Budapeste contra o império soviético." Regressemos assim a um momento de viragem da história do século XX.

Outubro de 1956: explode a revolução húngara. Mas um dos traços característicos desta revolução - o impulso para uma nova ordem social e democrática - é cuidadosamente ignorado pela propaganda, tanto no Leste quanto no Ocidente. Em 1956, a possibilidade de uma "terceira via" institucional, social e económica, entre capitalismo e stalinismo, foi destruída. Os defensores de um socialismo democrático e autogestionário não perceberam a amplitude desta derrota à escala histórica.

Um tal movimento de auto-organização precisa de amadurecimento social, político, cultural e o descrédito aberto dos órgãos de poder oficiais, autocráticos. Em Março de 1955, Imre Nagy (executado no dia 18 de Junho de 1958), levado ao poder em 1953 para evitar uma crise, é demitido das suas funções e atacado por Matyas Rakosi, novo chefe do governo e secretário-geral do Partido Comunista. Forma-se em torno de Nagy um grupo pouco organizado, composto de escritores, de jornalistas e de membros do PC. Pela primeira vez, num país do Leste, surge uma oposição durável no seio e nas margens das estruturas oficiais. Ela será vista pela "opinião pública" como uma solução de poder alternativa. As mobilizações futuras disporão de um objectivo político unificador: o regresso de Nagy ao poder. Mas a placa de chumbo da "normalização" parece então ter voltado a impor-se. Todavia, os desafios ao regime de Rakosi continuam a existir em 1955.

Em 1956, eclode a "Primavera de Budapeste". Desde Março, multiplicam-se os boatos sobre o relatório secreto feito por Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Nele, Kruschev tinha anunciado uma parte dos "crimes de Estaline". Duas minas estão, desde logo, no caminho de Rakosi. A reaproximação entre Kruschev e Tito, em 1955, retira toda a validade aos processos que ele montou em 1949 contra membros prestigiados do partido, como Lazlo Rajk. Os "desvios titistas", tinham sido a acusação principal. Depois, o reconhecimento dos "crimes de Estaline" recolocava a questão da repressão levada a cabo pelo PC húngaro desde 1947-1948.

A reivindicação da reabilitação de Lazlo Rajk - lançada numa reunião pública, em 27 de Junho de 1956, pela sua viúva, Julia Rajk - vai desembocar na primeira manifestação pública gigantesca da oposição na Hungria do pós-guerra: o funeral oficial de Rajk, a 6 de Outubro de 1956. Desde Março, e sobretudo depois de Junho de 1956, intelectuais, escritores e membros do partido animam um debate público nas reuniões do Círculo Petöfil. A 27 de Junho, cerca de 6 mil pessoas participam num debate do Círculo sobre o tema da imprensa. Fazem-se palestras nas empresas. Um "segundo centro político" firma-se no país, como denuncia a direcção do partido único. A 28 de Junho de 1956, em Poznan, na Polónia, explode uma revolta operária, duramente reprimida. Ela tornar-se-á um sinal de reunião na Hungria.

 Movimento independente

Matyas Rakosi procura utilizar a repressão da sublevação em Poznan para lançar uma vaga de repressão na Hungria. Faz-se uma lista de 400 "elementos de oposição". Mas o nível de alerta foi atingido. Para tentar evitar uma crise aberta, Suslov e Mikoyan, enviada do PCUS, decidem a substituição de Rakosi por Ernö Gerö, o seu braço direito, e fazem ascender um dirigente que fica na reserva, Janos Kadar. Mas esta pequena cirurgia não será suficiente.

No dia 18 de Outubro, é criada uma organização independente de massas dos estudantes, a Liga das associações estudantis universitárias e liceais húngaras (Mefesz). Aparece assim, na cena pública, um movimento de massas independente das estruturas do partido-Estado, com o seu próprio jornal. Bill Lomax sublinha as implicações: "O movimento de oposição que passou (...) dos escritores aos organizadores do círculo Petöfi vai cair nas mãos dos estudantes." A plataforma da Mefesz contém reivindicações-chave: uma nova direcção para o partido, um governo dirigido por Nagy, novas eleições, uma nova politica económica, o ajuste das normas de trabalho nas fábricas e a autonomia das organizações operárias, a revisão dos processos e a amnistia, a liberdade de imprensa. Juntam-se á lista o multipartidarismo e a retirada das tropas soviéticas estacionadas na Hungria, quando se realizam as assembleias em todo o país.

Em 22 de Outubro, os estudantes chamam uma grande manifestação para o dia seguinte. Nela juntam-se todos os sectores da sociedade, até os soldados. Às 9 horas da noite, diante do Parlamento, Nagy dirige-se à multidão. Pede aos manifestantes que voltem para casa e promete fazer tudo... para aplicar o seu programa de 1953! Nagy continua convencido que tudo deve ser resolvido no quadro do partido, mesmo levando em conta, com atraso, a existência de um impulso popular impetuoso.

A frustração dos manifestantes é grande depois deste discurso. Grita-se a palavra de ordem "Agora ou nunca". Manifestantes, com a ajuda de camiões, derrubam a colossal estátua de Estaline... deixando um par de botas na base. Começa o confronto militar. Houve soldados que deram as suas armas e outros que foram requisitados das suas casernas, sem muitas dificuldades. A greve geral estende-se em todo o país.

 Força insurrecional

A direcção do partido e do exército, incerta do comportamento das tropas húngaras, pede a intervenção das forças soviéticas. Enquanto "um mundo se desmorona", a direcção do partido reúne-se. Nagy procura ainda soluções neste quadro. Só ao meio-dia, em 24 de Outubro, anuncia que a lei marcial não será aplicada imediatamente e exige a entrega das armas...

Mas o movimento de massas adquire a sua própria dinâmica. "Os combatentes estavam literalmente dispostos a combater até à morte. É provavelmente a principal razão pela qual a direcção política não pôde impor um compromisso e não conseguiu, com reformas parciais, restaurar a ordem. A outra razão decisiva residia no movimento revolucionário que vinha de baixo, na auto-organização do povo a todos os níveis." De 24 a 28 de Outubro, o exército soviético não consegue impor a sua ordem. No início, há cenas de confraternização. Mas, a 25 de Outubro, diante do Parlamento, explode uma fuzilaria que provoca muitos mortos.

É a viragem. Durante quatro dias, os combates são violentos. As tropas "insurrectas" reúnem 15 mil pessoas no máximo. A insurreição espalha-se a todo o país em torno das reivindicações sócio-económicas, democráticas e de independência nacional face aos soviéticos. A 28 de Outubro, diante da amplitude da resistência armada e civil, decide-se a retirada das tropas soviéticas, insuficientes para se imporem rapidamente. Aparência enganadora de uma vitória. Hoje, sabemos que a decisão era de ordem táctica, tomada de acordo com Kadar. Desde o dia 27 de Outubro, Nagy assume a liderança de um novo governo, ainda em desfasagem com a sublevação da sociedade.

De 28 de Outubro a 4 de Novembro, data da segunda intervenção soviética, destacam-se quatro elementos.

Primeiro, a 31 de Outubro, começa a centralização dos conselhos operários. As reivindicações são claras: as empresas pertencem aos trabalhadores; o conselho é o órgão de controlo democraticamente eleito; o director é eleito; salários, métodos de trabalho, contratos com o estrangeiro (URSS) devem ser submetidos ao conselho; as contratações e os despedimentos são da sua competência; a utilização dos lucros deve ser decidida pelo conselho. Este programa traduz uma visão de sociedade pouco conforme à ideia de um regresso ao regime de antes da guerra. A união entre os conselhos operários e os comités revolucionários locais é cada vez mais estreita.

Em segundo lugar, o centro de gravidade do poder oficial passa claramente do partido ao novo governo de Nagy. As negociações entre Nagy e os conselhos, um pouco cépticos, avançam para pôr fim à greve e consolidar a situação.

Em terceiro lugar, Janos Kadar monta um novo partido, qualificado de anti-estalinista, o Partido Socialista dos Trabalhadores Húngaros (MSZMP). Ele deve servir de apoio à instauração de um novo poder, uma vez "restabelecida a ordem" pelo exército soviético.

Enfim, o governo Nagy pede o reconhecimento de uma Hungria neutra, reivindicação cujo eco será grande na Hungria. A "comunidade internacional" faz-se de surda.

No dia 4 de Novembro, face à segunda intervenção militar soviética, a população recorre à greve geral, certamente a mais completa e unida que jamais a história conhecera até então. A resistência militar, apoiada antes de tudo na juventude dos bairros operários, dura seis dias. A Coordenação dos conselhos torna-se o centro da resistência. A partir do dia 12 de Novembro, uma estrutura oficial centralizada funciona como contra-poder, com os seus boletins e os seus panfletos. As reivindicações prioritárias são as seguintes: retirada imediata das tropas soviéticas, liberdade de imprensa, controlo sobre a polícia e o exército para impedir a infiltração de agentes do AVH (polícia política), amnistia para os civis e os militares que participaram da insurreição.

 Destruir os conselhos

A representatividade do Comité Central dos conselhos da Grande-Budapeste (KMT) é tal que Kadar, chegado em furgões do exército soviético, é obrigado a negociar com ele. Uma reunião tem lugar nos dias 14 e 15 de Novembro. Entre os temas discutidos: a extensão de um sistema de conselhos à escala nacional, o direito de greve e a retirada das tropas soviéticas. À primeira reivindicação, Kadar respondeu que "nada do género existia antes e que uma tal estrutura era supérflua numa democracia popular".

Os delegados dos conselhos permanecem firmes na sua posição. A repressão torna-se então a arma preferencial da burocracia. A 27 de Novembro de 1956, numa circular, a direcção do KMT indica a questão central do momento: "As empresas estão nas nossas mãos, as mãos dos conselhos de trabalhadores. O governo sabe-o e quer, antes de tudo, acabar com isso." A prisão dos líderes mais representativos do KMT provocará a greve geral de 11 e 12 de Dezembro. A repressão endurece. A 5 de Janeiro de 1957, aqueles que se recusam a trabalhar ou "provocam greves" são susceptíveis da pena de morte... O fluxo de refugiados atingirá as 200 mil pessoas.

 A íntegra deste artigo (em francês) está disponível no site de À L'encontre

 

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