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Entrevista a Noam Chomsky

NÃO HOUVE JUSTIFICAÇÃO MORAL OU LEGAL PARA ESTA GUERRA
chomsky060828Nesta entrevista ao diário egípcio Al-Ahram, o linguista e intelectual norte-americano Noam Chomsky cita Tucídides para expor a máxima que rege as relações internacionais nos dias de hoje: "Os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem como devem." Chomsky desmonta a argumentação dos que vêem uma justificação moral para Israel ter desencadeado a guerra. E alerta para o facto de os EUA e Israel prosseguirem planos de pregar os últimos pregos no caixão dos direitos nacionais palestinianos.

 

"Os fortes fazem o que podem"

Por NERMEEN AL-MUFTI, Al-Ahram, 24/8/2006

 
Por que tem Israel o direito de auto-defesa, quando os países árabes o vêem negado?

Tucídides deu resposta a essa questão há muito tempo: "Os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem como devem." É um dos princípios mais importantes das relações internacionais.


Muitos estados árabes declararam que não iam cortar relações com Israel, dizendo que esta guerra era com o Hezbollah, e as consequências eram culpa do Hezbollah. Acha que houve - e talvez permaneça - uma pressão americana por trás destas declarações?

Numa reunião de emergência da Liga Árabe, a maioria dos estados árabes - tirando a Argélia, o Líbano, a Síria e o Iémen - condenaram o Hezbollah. Ao fazê-lo, estavam a "desafiar abertamente a opinião pública", como disse o New York Times. Mais tarde tiveram de recuar, incluindo o mais antigo e mais importante aliado de Washington na região, a Arábia Saudita.

O rei Abdullah disse que "se a opção de paz for rejeitada devido à arrogância israelita, só resta a opção da guerra, e essa ninguém sabe que repercussões vai ter na região, incluindo guerras e conflitos que não vão poupar ninguém, nem mesmo aqueles cujo poder militar lhes dá a tentação de brincar com o fogo."

A maioria dos analistas achou - plausivelmente, na minha opinião - que a principal preocupação do rei é a influência crescente do Irão e o embaraço causado pelo facto de, no mundo árabe, apenas o Hezbollah ter oferecido apoio aos palestinianos que sofriam um ataque brutal nos territórios ocupados.

 

Existe alguma justificação moral ou legal para esta guerra, como Bush, Rice e os média ocidentais insistem?

Podemos ignorar Bush e Rice, que participam na invasão israelo-americana do Líbano.

Sabemos muito bem que, pelos padrões ocidentais não há justificação moral ou legal para esta guerra. Prova suficiente disso é o facto de que por muitos anos Israel raptou libaneses regularmente, enviando-os para prisões israelitas, incluindo prisões secretas como o famoso Campo 1391, que foi descoberto por acaso e rapidamente esquecido (e, nos EUA, os média de referência nunca sequer escreveram uma linha sobre ele). Ninguém sequer sugeriu que o Líbano, ou fosse quem fosse, tinha o direito de invadir e destruir grande parte de Israel em retaliação.

Como fica claro por este feio e longo registo, o rapto de civis - um crime muito pior do que a captura de soldados - é considerado insignificante pelos EUA, o Reino Unido e outros estados ocidentais, e pela opinião articulada em geral, quando é feito pelo "nosso lado".

Este facto foi revelado dramaticamente uma vez mais no início da actual explosão de violência, depois do Hamas ter capturado um soldado israelita, o cabo Gilad Shalit, em 25 de Junho. Esta acção provocou uma grande demonstração de indignação no Ocidente, e apoio à reposta violentíssima de Israel em Gaza. Um dia antes, a 24 de Junho, forças israelitas tinham raptado dois civis em Gaza, um médico e o irmão, enviando-os para algum lugar do sistema prisional israelita. O acontecimento mal foi relatado, e não provocou qualquer comentário dos média de referência. Só esta sequência de acontecimentos esclarece com toda a evidência que a demonstração de indignação devido à captura de soldados israelitas é uma fraude cínica, e elimina quaisquer réstias de legitimidade moral pelas acções que lhe sucederam.

 

Quer dizer que, para Israel, qualquer pretexto poderia justificar massacres diários no Líbano e em Gaza?

Com um pouco de imaginação, pode-se pensar em muitos pretextos. No mundo real, não há um único. E podemos acrescentar a esquecida Cisjordânia, onde os EUA e Israel prosseguem planos de pregar os últimos pregos no caixão dos direitos nacionais palestinianos, através dos seus programas de anexação, cantonização e aprisionamento (pela apropriação do Vale do Jordão). Estes planos são executados no quadro de outra cínica fraude: a "convergência", retratada nos EUA como "retirada", numa notável e bem-sucedida manobra de relações públicas. Também estão desde há muito esquecidas as colinas de Golã, ocupadas e virtualmente anexadas por Israel em violação às ordens unânimes do Conselho de Segurança (mas com o apoio tácito dos EUA).

 

Como iraquiano, penso que a actual guerra contra o Líbano e Gaza é uma parte essencial do esquema de Bush para mudar a região: redesenhar as fronteiras do acordo de Sykes-Picot...

Duvido que a maior parte deles alguma vez tenha ouvido falar de Sykes-Picot. Têm planos próprios para a região. O mais importante é o empenho habitual de controlar os principais recursos mundiais de energia. Os que não alinham podem esperar ser alvos de subversão ou de agressão. Isso não deveria surpreender, pelo menos os que conhecem a história do século passado - na verdade, a história muito anterior.

 

Acha que o Irão e a Síria estiveram por trás desta guerra, como disse Bush?

Presume-se em geral que eles pelo menos deram autorização ao Hezbollah para o ataque de 12 de Julho às forças militares israelitas na fronteira. Contudo, muitos dos mais sérios analistas do Hezbollah, e do Irão, concluíram que as acções do Hezbollah são de sua própria iniciativa.

 

Como podemos explicar o papel do Conselho de Segurança na destruição do Líbano e de Gaza, como antes do Iraque?

Os actos do Conselho de Segurança têm os limites impostos pelas grandes potências, principalmente os EUA. Por sua vez, os Estados Unidos podem em geral apoiar-se na Grã-Bretanha, particularmente depois de Blair, descrito ironicamente pela secção internacional do principal jornal britânico como o "figurante da Pax Americana".

Nos primeiros anos do pós-guerra, por razões óbvias, a ONU estava em geral sob o domínio dos EUA, e era muito popular entre as elites americanas. Em meados dos anos 60, estava a deixar de o ser, com a descolonização e a recuperação das sociedades industriais da devastação dos tempos de guerra. Desde essa data, os EUA têm estado na liderança dos vetos a resoluções do Conselho de Segurança numa ampla gama de assuntos, com o Reino Unido em segundo lugar; nenhum dos outros membros está sequer perto.

Concomitantemente, o apoio da elite à ONU caiu muito nos EUA, apesar de, e veja que interessante, o apoio popular à ONU ter permanecido notavelmente alto, um dos muitos exemplos do enorme afastamento entre a opinião pública e a política dos EUA.

Acima deste limite crucial, o poderio americano permite-lhe moldar as resoluções e acções da ONU que está disposto a aceitar. Outras potências têm os seus próprios motivos cínicos para o que fazem, mas a sua influência é naturalmente menor - mais uma vez, a máxima de Tucídides. As forças populares poderiam fazer muita diferença, e às vezes fazem, mas até que o prevalecente "défice democrático" seja reduzido, esse efeito será limitado.

 

Não consigo entender a arrogância israelita. Consegue?

Mais uma vez, a máxima de Tucídides. Mas vale a pena levar em conta que Israel pode ir tão longe quanto o seu protector de Washington permitir e apoiar.

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