You are here

Entrevista ao refusenik israelita que usa o teatro-fórum para combater a ocupação

Chen AlonChen Alon tem 31 anos, é israelita e vive em Telavive. Educado num ambiente sionista e encorajado desde pequeno a servir o Exército, assim o fez durante anos, até se tornar um refusenik. No passado, cumpriu ordens cruéis: cercar aldeias, prender crianças, reprimir manifestações. Hoje, é um activista político contra a ocupação e, com um grupo de israelitas e palestinianos, usa o arsenal do Teatro do Oprimido[1] para alargar o seu movimento, promover a discussão e incitar os israelitas a experimentarem o que é estar no papel do outro, do "inimigo".
Entrevista de José Soeiro, em Barcelona, Abril de 2007.

Na associação de que faz parte, "Courage to Refuse", os israelitas dizem que amam o seu país e que até estão dispostos a combater por ele. Mas consideram que a campanha militar e a ocupação dos Territórios Palestinianos é ilegal, imoral e inútil. Chen faz parte do movimento refusenik e foi um dos dinamizadores da carta pública lançada por militares israelitas em que se recusam a servir o exército violando as fronteiras de 1967, em acções que só servem, como escreveram, para "dominar, expulsar, condenar à fome e humilhar um povo inteiro" e que, sendo acções de "ocupação e opressão", não servem sequer o alegado propósito de defesa de Israel. A carta, assinada por mais de 600 soldados, abalou a sociedade israelita e teve um impacto importante no processo eleitoral de Janeiro de 2003, num momento em que a direita política defensora das acções militares ganhava peso. Nessa altura, a campanha que levou a cabo com os seus companheiros refuseniks foi considerada por alguns como o mais importante elemento de renascimento da esquerda em Israel. Visto como traidor pelo Estado, Chen teve já de cumprir penas de prisão militar. Actualmente, a estratégia do Exército passa menos por reprimir e mais por enviá-los para outro tipo de missões. Mas Chen prossegue o seu activismo, usando o Teatro do Oprimido como arma de denúncia da situação. Trabalhando do "lado dos opressores", ele encena situações concretas passadas nos checkpoints e incita os israelitas a colocarem-se no lugar dos palestinianos e a experimentarem, ainda que por momentos, o que é estar no papel do outro.

Chen esteve no mês passado em Barcelona, num encontro de activistas teatrais. Foi aí que o encontrei, que tive oportunidade de o entrevistar e de conhecer melhor este homem que acredita na paz mas não na passividade.

Estiveste a servir no Exército como toda a gente em Israel. Qual foi o significado desta experiência para ti?

O significado de servir no Exército só pode ser percebido se compreendermos que há um serviço militar obrigatório que força todos os homens e as mulheres israelitas a servirem no Exército. O mito é que o Estado de Israel está rodeado por inimigos e que se cada um de nós não mostrar solidariedade na questão da segurança, se não partilharmos todos o mesmo risco na defesa de Israel, não sobreviveremos. Portanto, nunca foi questionável para mim estar no Exército. Eu queria muito, tinha muita vontade de o fazer, como praticamente todos os homens e mulheres em Israel. Mas o primeiro encontro que tu tens e onde começas a ficar céptico em relação a isso é quando duas coisas acontecem. Uma é quando te deparas com a violência severa. Eu servi durante a Primeira Intifada, em 1987 e é muito difícil. Aí tu apercebes-te que não é possível justificar realmente as acções que acontecem, a ocupação, mesmo que se assuma - e eu não assumo isso - que existe uma justificação que é a segurança de Israel, percebes que isso não pode ser atingido através da humilhação de 3 milhões e meio de pessoas. Mesmo sendo verdade que Israel deve ter o direito de se defender, isso não pode ser feito oprimindo 3,5 milhões de pessoas. É muito importante perceber que a ocupação não é um conceito, são milhares de acções concretas, como invadir casas, prender milhares de pessoas, como os checkpoints, como impedir as pessoas de terem cuidados médicos, de acederem a direitos humanos básicos, como terem água. Se é isto que significa servir a segurança de Israel, então eu não tenho nenhuma vontade de participar nisso, na humilhação de gente inocente. Aquilo a que nós chamamos "terroristas" e a que eles chamam "lutadores pela liberdade" não são toda a população, são muito poucas pessoas, e esta punição colectiva é uma coisa totalmente imoral.

E podes explicar como é que surgiu este movimento refusenik?

Começou, na prática, desde a Cimeira de Camp David, quando Ehud Barak e Yasser Arafat regressaram aos seus povos e disseram: "não conseguimos alcançar a paz, vamos ter de viver em guerra". Muitos soldados, muitas pessoas em Israel disseram "se os nossos líderes não estão dispostos a pagar um preço, a devolver os Territórios aos palestinianos, se eles não estão dispostos a ser responsáveis enquanto líderes, nós vamos ter de encontrar uma solução, há de certeza uma solução". Mas se eles chegam aqui e dizem que a única solução é continuar a humilhar estas pessoas, que nós temos de continuar lá, a morrer e matar como soldados, porque eles são incapazes de encontrar uma saída, então nós sentimos que se eles, que são os líderes, não conseguem arranjar uma solução, nós não tomaríamos mais a responsabilidade por essa decisão deles. Nós pensamos: "eu não vou partilhar a responsabilidade contigo se tu não consegues arranjar uma solução, agora é a tua responsabilidade!". Portanto, em Janeiro de 2002, 50 de entre nós organizamo-nos muito rapidamente, pessoas que se conheciam do Exército, do campus universitário de Telavive, pessoas que nós sabíamos, de boca a boca, que estavam descontentes, que não queriam mais servir o Exército ali, e escrevemos aquela petição[2]. Era óbvio que bastava publicá-la no jornal e que as pessoas já estavam prontas. Fizemos um site na Internet, com alguns números de telefone. Durante duas semanas recebemos imensos telefonemas. Quisemos falar pessoalmente com cada pessoa antes dela assinar. Encontramo-nos pessoalmente com cada pessoa, ouvimos as histórias, perguntamos por que se queriam juntar a nós, se estavam dispostas a pagar o preço de irem presas...

Qual é a relação entre os refuseniks e a resistência palestiniana?

No princípio não tínhamos relações nenhumas, nós nem sequer dávamos entrevistas aos media internacionais, queríamos dirigir a nossa mensagem apenas aos israelitas, dizendo: "o que nós estamos a fazer é criminoso, é muito mau, temos de mudar". Mas passados dois anos, quando a nossa pressão começou a ser muito eficiente na sociedade israelita e Sharon decidiu o plano da retirada da Faixa de Gaza, então percebemos que isso resultava. Mas as pessoas da direita começaram também a recusar servir o Exército na retirada de Gaza, porque diziam que se os esquerdistas se recusam a servir na ocupação, eles também recusavam servir na retirada... Mas muito poucos recusaram... Após o plano de retirada, a nossa estratégia mudou, consideramos que tínhamos atingido tudo o que podíamos usando esta forma de activismo e que na verdade o Exército estava a usar uma estratégia muito inteligente contra nós, eles mandavam os soldados que eram pró-paz ou potencialmente refuseniks e punham-nos noutros sítios. E sabemos o que aconteceu no Líbano no Verão passado, tu vais para uma guerra injustificada e que tu não podes ganhar...

Nós mantemo-nos activos mas mudamos a estratégia, para uma colaboração com movimentos palestinianos que estão na mesma posição que nós, pessoas que eram terroristas ou lutadores pela liberdade (dependendo de quem os define...), que estiveram vários anos na prisão e que neste momento mudaram a sua actuação, como nós, e não fazem mais acções de luta violenta, que acham que o caminho não é participar na violência das suas sociedades e que querem manter a luta e colaborar com aliados do outro lado, do "lado dos opressores", como nós, que somos traidores para os dois lados. Nós criamos esse contacto de forma bastante secreta, porque não queríamos que se soubesse antes de estarmos preparados. Todos eles estiveram vários anos na cadeia, em prisões israelitas, falam hebreu muito bem, e decidimos colaborar num movimento activista com gente dos dois lados, Israel e Palestina, que iria trabalhar em círculos restritos, cada grupo trabalharia nas duas sociedades, às vezes eu vou lá com os palestinianos, outras fazemos coisas cá.

De quantas pessoas estamos a falar?

Cerca de uma centena de cada lado... Sabes, nós temos algumas regras dentro do nosso grupo. A primeira é que tudo é feito em ambas as línguas. O movimento está sempre a acolher e a chamar novas pessoas. Em cada reunião temos um espaço para as novas pessoas, uma espécie de ritual em que começamos com uma história de violência de ambos os lados. Uma pessoa de cada lado levanta-se e inicia a sessão contando uma história pessoal de violência que viveu. Isso cria um sentimento de que a base deste grupo é a violência e como combatê-la.

Mas contra a violência institucionalizada de um Estado ocupante sobre um povo, não é legítimo usar a violência?

Essa é a questão principal que nos colocamos...

Porque não é equivalente...

Não, não é equivalente. Nós dizemos sempre isso, que não estamos a falar de uma situação em que haja equilíbrio. Claro que não estamos numa situação igual. Eles estão sob uma ocupação. E é por isso que a declaração do grupo não é de que estamos a criar a paz entre um lado e outro, de que estamos a construir um futuro melhor e essas coisas. Não. Nós estamos a lutar em conjunto, de uma forma não-violenta, para pôr um fim à terrível ocupação. Não é dizendo que há equilíbrio, que há igualdade, não, não estamos a fechar os olhos à realidade e a dizer: "tu não serás mais violento, nós também não seremos", não é nada disso. O que somos é um conjunto de pessoas traumatizadas pela violência. Nós sabemos que a violência só traz mais violência. Esta é a conclusão a que chegamos. Isto não quer dizer que os palestinianos não têm direito de se sublevarem e de lutarem contra a ocupação. Mas o que este conjunto de pessoas diz é que, para o lado a que cada um pertence, a violência só gera mais violência.

Mas temos de definir o que é violência... Todos concordamos - acho que tu também concordas - que entrar numa escola e matar não sei quantas pessoas não é legítimo. Mas se estiveres a atirar pedras a um tanque que quer entrar em tua casa, provavelmente isso não é violência... Ou lutar contra os soldados armados... O que nós tentamos fazer é definir os limites, aquela linha a partir da qual nós não queremos ir, de ambos os lados. Porque nós não somos pacifistas, mesmo os israelitas dizem que um Exército que proteja as pessoas, se é que existe, não é violência... (mas nós ainda não vimos um exército assim...). Por princípio, nós dizemos que não somos pacifistas, que cada lado tem o direito de se defender. Não estamos neutralizados, nós lutamos, às vezes com os nossos corpos, contra o Muro... Não se trata de dizer que agora a luta é espiritual ou assim, não. Mas a violência é algo que se tornou realmente uma loucura nas nossas sociedades, sabes?... Explodir numa escola ou matar crianças numa manifestação, matá-las a sangue frio... É realmente uma loucura... Numa operação com um alvo muito específico, por exemplo para "matar um terrorista", e depois matar muita gente com esse pretexto, é um crime. Por isso nós tentamos perceber quais são os limites, o que é que é legítimo na luta. E não queremos impor esses limites a ninguém. Não queremos dizer à outra parte "pronto, vocês podem atirar pedras, mas não podem explodir-se na nossa cidade". Não. A ideia é criar um novo discurso e um novo ambiente.

Por que é que começaste a usar o teatro, e o teatro-fórum em particular?

Comecei a usá-lo, desde logo, porque venho do teatro, estava ligado ao teatro convencional. E não conseguia lidar mais com esta divisão, de ser por um lado um activista, por outro lado um actor. Por isso decidi juntá-las e quando conheci o Boal, as suas técnicas, percebi que há uma boa forma de unir as duas coisas. Como disse o Sanjoy hoje de forma muito bonita: não se trata de um teatro político mas de fazer teatro como política. Percebi que era muito útil usar o Teatro do Oprimido, especialmente na nossa região e no nosso contexto e utilizá-lo para assuntos específicos que são relevantes para nós.

Quando tu permites que as personagens dos soldados sejam substituídas, o objectivo é criar alguma forma de empatia?[3]

Não, não. Já me acusaram disso. Mas a ideia de permitir sobretudo os israelitas substituírem os soldados é criar uma consciência e um espaço para que as intervenções alarguem o movimento refusenik. Às vezes é um acto que as pessoas sentem que são obrigadas a fazer. Não é uma situação convencional opressor-oprimido. Muitos de nós não queremos estar lá. Eu sei que quando vou, na vida real, representar o papel de soldado israelita, eu vou porque tenho de ir. Mas não, não temos de ir. E lá, no cenário, na peça, tens de sentir isso. E ter-me a mim como curinga, que fiz isso, e talvez no público estejam outras pessoas que também são refuseniks, e dizermos ao opressor que pode desobedecer, que não tem de desempenhar aquele papel. Que pode recusar estando ali no teatro, mas que podem recusar antes de entrar na cena, podem pedir ao seu comandante para recusar também, têm muitas opções.

Quando os israelitas substituem as personagens palestinianas, tu achas que isso pode mudar alguma coisa?

Sim, muda. Cria empatia, que é um coisa positiva. As pessoas quando odeiam estão completamente cegas. As pessoas não conseguem imaginar o que é estar oito horas num checkpoint. E na peça, ficam lá durante dez minutos e ficam malucas, começam a ficar enfurecidas, a dizer que não têm tempo... Portanto acho que é muito útil. As pessoas conhecem as situações que nós representamos, os dois lados conhecem aquelas situações. Os israelitas e os palestinianos estão imersos em situações de conflito a todo o momento, nos checkpoints, em Jerusalém oriental e ocidental... Na verdade, nós não estamos apenas separados, há lugares em que estamos separados pelo muro, mas há lugares em que estamos juntos, em que somos apanhados bem no meio do conflito. São esses momentos que nós representamos.


[1] O Teatro do Oprimido é um sistema de técnicas e jogos que pretendem democratizar os meios de produção teatral e usar a linguagem do teatro para a libertação. Partindo das vivências concretas dos grupos e populações com as quais se trabalha, o Teatro do Oprimido transforma os espectadores em espect-actores, agentes activos da transformação da sua realidade. Mais informação pode ser encontrada em www.theatreoftheoppressed.org.

[2] A petição pode ser lida em seruv.org.il.

[3] No teatro-fórum, as pessoas devem tomar apenas o lugar do oprimido e substiutuí-lo de modo a entrarem em conflito com o opressor. Ou seja, não faz sentido substituir o opressor, torná-lo num não-opressor, e resolver a situação através de uma solução mágica que não existe na realidade. No entanto, no caso da peça Viewpoints, de Chen Alon, que reproduz uma situação vivida num checkpoint, os espec-actores podiam substituir os soldados, uma vez que muitas vezes era com eles que o público se identificava, já que as sessões de teatro-fórum eram feitas em Israel para pessoas que já foram e serão novamente chamadas a cumprir aquele papel (potencialmente, toda a sociedade, uma vez que homens e mulheres têm serviço militar obrigatório e têm de servir o Exército todos os anos durante um mês).

Termos relacionados Internacional