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Contra a recuperação racista do feminismo pela direita francesa

//www.phototheque.org/"Em nosso nome não!" [1]
Todos os candidatos de direita e de extrema-direita parecem especialmente preocupados com a liberdade das mulheres e desenvolvem uma sensibilidade e uma atenção quase obsessivas sobre a igualdade dos sexos. Tudo se passa como se a condição das mulheres se tivesse tornado, como por magia, uma prioridade nacional em matéria... de justiça social? Não, de "imigração".

Artigo de Elsa Dorlin, filósofa, investigadora na Universidade de Paris, membro da rede feminista NextGenderation, publicado a 31 de Março de 2007 no site L'Autre Campagne ("A outra campanha").

Cartaz da FN, referido no texto de Elsa DorlinJean-Marie Le Pen, Nicolas Sarkozy, Philippe de Villiers, principalmente, não param de nos recordar que a igualdade dos sexos é um princípio constitutivo da "nossa" nação e da "nossa" cultura, mesmo um traço distintivo da "nossa" civilização, cristã, como não podia deixar de ser. Que as mulheres são tratadas no "nossos país" como iguais aos homens, que gozam de todos os direitos, assim como de todos os privilégios. Assim, doravante, uma das condições de admissão no "nosso" território das populações imigradas será o respeito incondicional daquilo que, segundo o que dizem, tem a ver com a essência do Ocidente: a igualdade dos sexos. Para alguns, os candidatos à imigração em França deverão assinar um pacto no qual se comprometam a respeitar o que é apresentado como um "costume" muito nosso: o respeito pelas mulheres. À semelhança da Holanda, difundir-se-ão vídeos de mulheres, com os seios nus nas praias da Côte d'Azur, ou então de dois homens a beijarem-se ternamente na boca, para testar a sua tolerância para com a modernidade.

A campanha presidencial francesa faz aqui eco de um processo já iniciado. Tudo começou com o Afeganistão e a guerra declarada de Bush contra os talibans em nome do direito das mulheres [2], cobertura para uma cruzada imperialista, prosseguiu com o projecto de constituição europeia, no qual se podia ler que a igualdade dos homens e das mulheres era um princípio constitutivo da cultura e da história europeias, sem que no entanto tivesse medidas constitucionais concretas e ambiciosas [3].

Assiste-se pois à racialização de um princípio político, o da igualdade entre os sexos e, em menor medida, das sexualidades: a igualdade entre homens e mulheres tornou-se um traço cultural, mesmo um património genético herdado da raça dos francos ou dos gauleses. As políticas mais nacionalistas e mais securitárias fazem-se em nome das mulheres. Ora, esta apropriação racista do combate feminista histórico, dos nossos movimentos, das nossas lutas, das nossas vitórias tem três efeitos maiores. Em primeiro lugar, visa instrumentalizar o feminismo no quadro de uma retórica ao serviço de um discurso racista mais ou menos declarado. Quando Marine Le Pen defende a causa das mulheres, seduz com poucos custos um eleitorado feminino menos inclinado a votar na Frente Nacional (extrema-direita), além disso encobre as propostas do seu programa que visam favorecer o regresso maciço das trabalhadoras a casa, limitar drasticamente o direito ao aborto, favorecer uma política de família que dê a prioridade às "mães francesas".

Em segundo lugar, a apropriação pelos partidos da direita deste discurso com perfume feminista tem como consequência ocultar totalmente a realidade das desigualdades, das discriminações e das violências a que as mulheres são sempre sujeitas, mas também todas as outras minorias sexuais (gays, lésbicas, transsexuais), "no nosso país". Sobre esta questão, o caso das violências sexistas, homófobas, em relação às lésbicas ou aos transsexuais é paradigmático. A focalização quase exclusiva dos políticos sobre violências "exóticas", tais como a lapidação, a imolação, a excisão... tem como efeito fazer-nos crer que a violência sexista, especialmente, é o apanágio do "rapaz árabe" [4], que frequenta os corredores e as caves dos bairros sociais suburbanos a soldo da Al Qaeda, do "imigrado africano" polígamo e adepto do vodu, do "antilhano do rendimento mínimo" alcoólico e jovial, que doravante só as mulheres negras, descendentes da imigração colonial, migrantes ou refugiadas "devem" emancipar-se, libertando-se dos "seus" homens". Ora os inquéritos sociológicos conduzidos há vários anos não param de recordar [5]: a violência sexual (contacto, violação, assédio, etc) não tem cor, nem origem, é transversal a todas as classes sociais. A violência conjugal mata uma mulher a cada três dias em França. E se as mulheres estão mais expostas à violência verbal ou física no espaço público quando vivem em grande precariedade, não deixa de ser verdade que o sexismo não tem cara, como nos bons velhos tempos da antropometria racista do século XIX.

Em terceiro lugar, a apropriação de alguns temas feministas pelos partidos de direita tem como efeito racializar o próprio feminismo, orquestrando um choque de civilizações entre o véu e a cara destapada, num só passo. Assim, quando a FN lançou no Outono de 2006 uma campanha de cartazes, escolheu, entre outras, uma jovem "magrebina" cabelos soltos, tee-shirt curta, bermudas, piercing, para incarnar o slogan da FN. Trata-se de exibir uma figura feminina da assimilação claramente oposta à da "jovem rapariga com véu", considerada como hostil à pretensa laicidade republicana, estigmatizada como partidária da dominação masculina.

A acreditar nos partidos de direita, o feminismo é portanto essencial ao "Ocidente". Mas de que feminismo estamos a falar? Do feminismo com que se embandeirou o exército francês na Argélia no fim do século XIX para ir "civilizar" os "bárbaros dos Árabes" que sequestravam e velavam as mulheres e as filhas? Foram estes mesmos militares, políticos e administradores coloniais que queriam libertar as mulheres da "sua cultura" e que, "de regresso à sua "mãe pátria" [...] foram os mais fervorosos opositores às lutas feministas da primeira vaga" [6](6), pelos direitos civis e cívicos das mulheres. Por outro lado, no "Oriente", exactamente os mesmos partidos da direita neo-conservadora hoje clamam que a dignidade das mulheres é diariamente injuriada no "Ocidente", como testemunha a publicidade ou a pornografia, segundo eles. O problema evidentemente não é civilizacional, ou mesmo cultural, mas político, entenda-se. Sabemos que em relação a numerosos combates, as direitas do mundo inteiro avançam simultaneamente contra as reivindicações dos movimentos feministas, gays e lésbicos; não há melhores aliados que Bento XVI, Le Pen ou Ahmadinejad nas questões do aborto ou do casamento homossexual [7](7).

Ora, os efeitos políticos destes discursos de ódio são catastróficos para o próprio feminismo, porque, como se viu recentemente na "questão do véu", hipotecam as alianças, tanto internacionais como nacionais, entre os diversos movimentos de mulheres, insuflando no seu seio a suspeita do etnocentrismo - as feministas "francesas" não teriam lições de emancipação a dar se esta se resumisse ao direito de andar de mini-saia, inversamente, as feministas "veladas" não seriam "verdadeiras" feministas - nem mesmo verdadeiras francesas, segundo os seus detractores, porque elas exibem uma imagem submissa das mulheres. Sair desta aporia infernal é em primeiro lugar recusar este antagonismo étnico e falacioso que opõe as "brancas" às outras, as "ocidentais" ou as "francesas" às "muçulmanas"..., é em primeiro lugar descolonizar um certo feminismo francês que se deixou seduzir por este pseudo discurso vitimário de direita e recusar que a luta contra o sexismo faça a cama ao racismo e à perseguição aos imigrantes. Trata-se pois de recusar pensar a libertação das mulheres nos mesmos termos que nos impõe a extrema-direita, e que ela impõe publicamente, denunciando o que de facto é contraditório com qualquer projecto feminista: a identidade nacional. Assim sendo, se a retórica da direita de Le Pen ou Sarkozy sobre a igualdade entre homens e mulheres tem uma tal audiência, é porque ela beneficia também dos subterfúgios da esquerda maioritária. Em certa medida, paralelamente à difusão na sociedade de uma certa consciência feminista - mesmo que esta última não se identifique com o feminismo histórico -, a colocação em minoria de um empenhamento feminista radical à esquerda permitiu que um feminismo de opereta emergisse à direita. Em 2007, que é feito da aplicação da enésima versão da lei Roudy que, na sua versão inicial de 1983, homologava um princípio de justiça, pelo qual se mobilizaram os movimentos feministas desde há mais de um século: para trabalho igual, salário igual? Onde estão medidas concretas de luta contra o "tecto invisível"? Onde está a aplicação de uma verdadeira política de jardins-de-infância, quando tantas mulheres não encontram lugar na creche para os seus filhos? Onde está uma verdadeira solidariedade com as mulheres do Sul que vêm justamente cuidar das "nossas" casas, das "nossas" crianças, dos "nossos" idosos e dos "nossos" doentes? Onde está uma educação sexual digna desse nome na escola? Onde está uma política eficaz de luta contra o sexismo que proponha, por exemplo, aos grandes fabricantes de brinquedos uma carta da igualdade dos sexos e das sexualidades, para que deixem de inundar os armazéns de utensílios domésticos para a pequena dona de casa exemplar? Onde está a paridade "privada", quando 80% do trabalho doméstico está sempre reservado às mulheres? Onde está a defesa da especialidade de ginecologia médica e a revalorização da carreira dos médicos que praticam a IVG? Onde está o reembolso da pílula? Onde está o acesso não só à adopção, mas também à procriação medicamente assistida para os casais gays, lésbicos, mas também transsexuais? Onde está justamente a des-psiquiatrização das trans identidades, quando se sabe que o "trans sexualismo" figura ainda na classificação da OMS como doença mental?

Para contrapor à retórica feminista dos partidos de direita, que barbarizam grupos sociais ou povos em nome das mulheres, que decidem quem são os civilizados e os incivilizados, a feminilidade empática desta ou daquela candidata não chega: um real empenhamento anti-sexista e anti-racista é mais que necessário, no quadro de um verdadeiro projecto de esquerda e, aqui e agora, na campanha, para impedir que uma política de exclusão social se faça em nosso nome.


[1] Retomo aqui o título do manifesto "Em nosso nome não!", lançado a 8 de Março de 2005 pela rede feminista Next Genderation por ocasião da jornada internacional das mulheres na campanha da Constituição Europeia. Texto (http://www.nextgenderation.net/projects/notinournames/francais.htmldisponível na net

[2] Cf. Christine Delphy, "Une guerre pour les femmes afghanes ?" ("Uma guerra pelas mulheres afegãs"), Nouvelles questions féministes, vol. 21, n°1, 2002

[3] NextGenderation, « Pas en notre nom ! », op. Cit

[4] Ver Nacira Guénif et Eric Macé, Les Féministes et le garçon arabe (As feministas e o rapaz árabe", Paris, l'Aube, 2004

[5] Maryse Jaspard (dir.), Enquête nationale sur les violences envers les femmes en France, (ENVEFF), Paris, La documentation française, 2003

[6] NextGenderation, « Pas en notre nom ! », op. Cit.

[7] Cf. Eric Fassin, « La démocratie sexuelle et le conflit des civilisations », Multitudes, n°26, 2006/3.

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