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Paço,
Esta discussão está a dar-me imenso prazer (espero que seja mútuo) porque nós os dois estamos à procura de chegar o mais próximo possível da verdade e não de “ganhar” a discussão. Como aliás seria de esperar de velhos amigos. Por isso é uma discussão sem golpes de efeito, truques teóricos, etc. E por isso quero já dizer-te que estamos de acordo em muita coisa, e eu concordo com muito do que dizes, nomeadamente sobre o Putin, a questão de ele estar a lixar-se para a forma como foi feito o referendo, o timing, etc.
Mas não estou de acordo, de maneira nenhuma, com que a integração, ou anexação (são coisas diferentes) da Crimeia seja um exercício de autodeterminação e que, em última instância, deveria ser apoiado. De facto, o que dizes é uma espécie de “Deus escreve direito por linhas tortas”, se me permites a expressão (não te zangues, sei que és ateu, como eu).
Por que não posso concordar com isso? Em primeiro lugar pela forma, insisto, à bruta como foi feita. Dizes que não morreu ninguém e que as tropas russas já lá estavam. Mesmo dando de barato que isso seja assim (é controverso), continuo a achar que foi à bruta. Como é que chamas o cerco às unidades militares ucranianas? Uma festa de confraternização? Pois olha que não foi. E só não houve mortes porque os soldados ucranianos não são suicidas e a desproporção de forças era flagrante. Aliás, olha que na invasão da Checoslováquia morreram apenas 108 checos e eslovacos num período de quatro meses, e uma parte foi em acidentes de trânsito. E este número só se soube muito depois. Na invasão dos países Bálticos não morreu ninguém (morreram depois, aos milhares, mas às mãos da NKVD). Para mim, o critério não é se houve tiros ou mortes, mas se foi à força. Ora como é que chamas à verdadeira parada militar de tropas russas disfarçadas, ao cerco às unidades militares ucranianas, à conquista de navios, à exibição ostensiva de força nas ruas da capital no dia do referendo? E à contagem à porta fechada? E às limitações ao trabalho dos jornalistas? Já para não falar na total ausência de democracia no próprio referendo. Dizes que não sabes como votaram ou deixaram de votar os tártaros. Pois não, nem eles nem ninguém, porque o referendo foi tudo menos transparente. Nestas condições, falar de exercício de autodeterminação parece-me errado.
Depois, há a questão que me levanta mais dúvidas, se há ali um direito à autodeterminação. O argumento de que não se pode ressuscitar os tártaros não me convence. Ao contrário do que muitos acham, o Estaline não era um maluco que mandava deslocar povos inteiros porque lhe dava na veneta. A expulsão de todo o povo tártaro, com o argumento de que eram colaboradores dos nazis, tinha o claro objetivo de russificar a Crimeia. A questão, no fundo é: os russos são maioritários na Crimeia devido a uma política deliberada de russificação, sim ou não? Se sim, a diferença com Gibraltar ou as Malvinas é pequena.
Eis porque não estamos de acordo na questão essencial. Continuo a achar que a anexação da Crimeia pela Rússia deve ser condenada sem hesitação.
E não me arrepelo nada que cites o discurso do Putin, acho que todos deviam lê-lo, é uma peça notável de cinismo grão-russo e de patriotismo imperial. Arrepelo-me sim com os encómios quase religiosos com que ele é saudado por certa esquerda, de que o exemplo mais delirante é este aqui: http://vineyardsaker.blogspot.com.br/2014/03/today-every-free-person-in-....
Quanto à questão propriamente dos acontecimentos da Ucrânia, não concordo nada com a forma como pões a questão. Parece-me que temos de partir, justamente, de “e o povo pá?” Ora tu tens razão quando dizes que houve uma mobilização legítima que foi cavalgada por gente pouco recomendável (como em geral o foram todas as mobilizações recentes que derrubaram ditaduras), sendo que aqui a particularidade é que há neonazis com forte papel na organização militar da mobilização. Quer isto dizer que a mobilização foi fascista, que os mobilizados foram camisas negras mussolinianas, como dá a entender Putin e parte da esquerda mundial? Aqui é que a coisa, como dizes, fia fino. Eu acho que não, e baseio-me em depoimentos a que dou crédito, que estão no dossier do Esquerda.net.
Mas não será que a mobilização foi desde o início inventada pela CIA? Os que dizem isso agora são os mesmos que diziam isso de todas as mobilizações que derrubaram as ditaduras do Leste europeu, não tem nada que saber. Uma boa demonstração de que isto não foi assim dá o insupeito Putin, quando diz, como exemplo do grande escândalo a que chegou a situação na Ucrânia, que “em alguns casos, é preciso autorização especial dos militantes na praça para encontrar alguns ministros do atual governo. Não é piada. É a realidade”.
Pois é: isso é que ele não pode tolerar. Com a NATO pode ele muito bem. Mas com ministros dependentes da rua, não.