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O que se passa atualmente na Ucrânia é um teste à forma como os grandes poderes aplicam as regras acerca do direito à auto-determinação. A Crimeia (maioritariamente tártara) foi anexada pelo Império dos Romanov em 1774. Mas só no final do séc. XIX a população russa ultrapassou estatisticamente aí a população tártara. Em 1921, a Crimeia adquiriu o estatuto de uma República Autónoma na arquitetura da URSS. Após a II Guerra Mundial, em reação à colaboração de muitos tártaros com os nazis, viu o seu estatuto ser rebaixado para "oblast" (província). Em 1954, Nikita Kruchev decidiu transferir o território para a República Soviética da Ucrânia. A população ucrâniana, até então bastante minoritária, aumentou a sua presença na Crimeia, tornando-se na segunda maior comunidade depois dos russos. Hoje, a população de origem russa clama pela realização de um referendo sobre o destino da Crimeia. Representando 58% da população do território, o seu voto será decisivo.
Pergunta-se: será legítimo, na sequência de um eventual referendo, a Crimeia vir a tornar-se independente? Ou a integrar-se na Federação Russa? Os poderes constituídos olham sempre com desconfiança para alterações nas fronteiras dos Estados. Todavia, a Crimeia só pertence à Ucrânia há setenta anos - não é pois um território histórico ucraniano. O Kosovo que - esse sim - era um território histórico sérvio, mas cuja população dominante deixou progressivamente de ser sérvia para passar a ser de origem albanesa, é hoje na prática independente. O seu governo provisório declarou a secessão, em 2008, com o apoio dos EUA e muitos países da UE, mas com a oposição da Sérvia, da Rússia e a condenação ou não-aprovação de 106 outros países (também não é reconhecido como tal pela ONU, que se atém à Resolução 1244 aprovada pelo seu Conselho de Segurança, em 1999). Irão os grandes poderes ocidentais aceitar uma situação semelhante para a Crimeia, se for esse o resultado de um eventual referendo? Ou irão insistir que a Crimeia é parte integrante do território da Ucrânia?
Stephen Krasner, num livro excelente (Sovereignty: Organized Hypocrisy, 1999), fornece alguma luz para refletir sobre estas questões. Eu continuo a ver num título de um filme de Fassbinder, uma das definições mais espantosas do que são as relações internacionais (muito para além da jurisprudência...):
"O Direito do Mais Forte à Liberdade"