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'Rive gauche'?

Cem dias depois de eleito, Hollande só desiludiu quem sobre ele criou ilusões.

A esquerda francesa no poder acantonou-se em matéria económica na gestão de curto prazo (...). Convertida à credibilidade internacional, flutuando na vaga liberal, ela colocou-se no terreno do adversário e ficou naturalmente cada vez mais desarmada. (...) Os objetivos de uma política de esquerda, ao serem sempre adiados para depois de um período de rigor que afinal nunca termina, tornam-se incompreensíveis, pouco credíveis ou mesmo ausentes." Palavras sábias escritas há alguns anos por um dirigente socialista francês. Sucede que entretanto o dito dirigente se tornou Presidente da França. Ei-lo pois confrontado agora com o teste da coerência. As palavras são importantes. Mas são também um ferrete para quem tem o poder de as transformar em ação e o não faz.

Cem dias depois de eleito, Hollande só desiludiu quem sobre ele criou ilusões. É certo que chegou a entusiasmar os seus apaniguados. No arranque da campanha que o levou ao Eliseu, prometia aos franceses "começar pelo sonho", "o sonho francês que é a confiança na democracia, a democracia que será mais forte que os mercados, mais forte que o dinheiro...". E, de facto, foi por esse sonho que começou, mas para o esvaziar.

Os antecipadamente encantados lembrarão a taxa sobre transações financeiras - valeria a pena recordar-lhes que ela incide apenas sobre 0,2% do valor dessas transações. Os indefetíveis sublinharão a tributação a 75% para rendimentos acima de 1 milhão de euros - valeria a pena recordar-lhes que a decisão foi adiada para o outono. E, acima de tudo, a claque do clube cantará hossanas à "mudança operada na governação europeia". E a eles deve recordar-se que a retórica de combate à orientação merkozysta da UE desaguou em capitulação pura: a emissão de eurobonds fica adiada por dez anos, o Pacto para o Crescimento será uma adenda insignificante, inodora e insípida ao Tratado Orçamental imposto por Berlim e mais de metade dos 120 mil milhões de euros tonitruantemente anunciados para o seu financiamento não são senão fruto de reafetações de fundos estruturais de gasto já programado até 2014.

A suposta solidez do sonho hollandista dissolveu-se rapidamente no ar com as expulsões das comunidades ciganas e com a resposta sem substância à ameaça de 8000 despedimentos pela Peugeot-Citroën e de 5000 pela Air France e pela Alcatel.

Hollande havia feito da sua apresentação como "presidente normal" uma eficaz arma de arremesso contra a hiperagitação de Sarkozy e a sua deriva de extrema-direita. Mas as virtudes de um homem normal deram lugar aos defeitos de um governante normal da social-democracia europeia, timorato na hora de fazer frente aos cânones do liberalismo económico porque rendido a ele como dogma que se pode, na melhor das hipóteses, suavizar mas nunca afastar. Hollande é um dileto membro dessa estirpe que ameaça a direita com pedidos de esclarecimento e a combate com abstenções violentas. Sem surpresa, por isso, o seu Governo assumiu-se como intérprete fiel do receituário dos cortes de despesa pública (33 mil milhões de euros até 2014) invariavelmente fragilizadores do Estado Social - em nome, como em toda a Europa, da sacralização do equilíbrio das contas públicas. A austeridade é para já, o sonho fica adiado sine die. Este novo rosto bem-amado da sedução liberal da social-democracia ganharia em assimilar por inteiro a advertência de Edgar Morin: "Por adiar o essencial em nome da urgência, acaba-se por esquecer a urgência do essencial."


Publlicado no Diário de Notícias, 24 agosto 2012.

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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