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Como a Magna Carta se tornou uma carta menor (I), por Noam Chomsky

Daqui a algumas gerações chegaremos ao milénio da Magna Carta, um dos grandes acontecimentos no estabelecimento dos direitos civis e humanos. Não está claro ainda se haverá motivo para celebração. E isso deveria ser objeto de grave e imediata preocupação. Por Noam Chomsky
Magna Carta, imagem de manuscrito depositado na Biblioteca Britânica, um dos quatro manuscritos que sobreviveram até hoje dos exemplares do documento de 1215 – Foto da wikimedia

Daqui a algumas gerações chegaremos ao milénio da Carta Magna, um dos grandes acontecimentos no estabelecimento dos direitos civis e humanos. Não está claro ainda se se vai celebrar, chorar ou ignorar.

E isso deveria ser objeto de grave e imediata preocupação. O que façamos ou deixemos de fazer hoje determinará o tipo de mundo que saudará esse acontecimento. Não é uma perspetiva atraente caso persistam as atuais tendências, e não é a menor delas que se está a estraçalhar diante dos nossos olhos.

A primeira edição académica da Magna Carta foi publicada pelo eminente jurista William Blackstone. Não foi tarefa fácil. Não havia disponível nenhum texto bom. Como ele escreveu, “o corpo da carta os ratos, desgraçadamente, comeram-no”; esse comentário contém um simbolismo sombrio, hoje, diante da tarefa que os ratos deixaram inacabada.

A edição de Blackstone compreende na realidade duas cartas, que têm por título a Magna Carta e a Carta da Floresta. A primeira, a Carta de Direitos, reconhece-se de modo geral como o cimento dos direitos fundamentais dos povos de língua inglesa, ou tal como dissera, de modo mais expansivo, Winston Churchill, “a carta de qualquer homem que se respeite, em qualquer tempo e lugar”. Churchill se referia concretamente à ratificação da Carta por parte do Parlamento, na Petição de Direito que implorava ao Rei Carlos I que reconhecesse que a lei, não o rei, é o soberano. Carlos concordou por um breve período, mas logo violou o seu juramento, deixando pronto o cenário para uma guerra civil mortal.

Depois de um amargo conflito entre o Rei e o Parlamento, restaurou-se o poder da realeza na pessoa de Carlos II. Na derrota, não se esqueceu da Magna Carta. Um dos dirigentes do Parlamento, Henry Vane, foi decapitado. Ele tentou ler um discurso no palco, mas trataram de impedi-lo, para que tão escandalosas palavras não chegassem aos ouvidos da multidão que aplaudia a sua condenação. O seu grave delito tinha consistido em redigir uma petição reivindicando o povo “como origem de todo poder justo” na sociedade civil, nem o Rei nem Deus o seriam. Foi essa postura pela qual lutou contundentemente Roger Williams, fundador da primeira sociedade livre no que hoje é o estado de Rhode Island. As suas opiniões heréticas influenciaram Milton e Locke, embora Williams fosse muito mais longe, fundando a doutrina moderna da separação da Igreja e do Estado, ainda bastante recusada nas democracias liberais.

Como sempre ocorre, a aparente derrota levou adiante, no entanto, a luta pela liberdade e pelos direitos. Pouco depois da execução de Vane, o rei Carlos outorgou uma Carta Real às propriedades rurais de Rhode Island, declarando que “a forma de governo é democrática” e, além disso, que o governo podia proclamar a liberdade de consciência para papistas, ateus, judeus, turcos, até para os quakers, uma das seitas mais temidas e maltratadas, de todas as que pereceram naqueles dias turbulentos. Tudo isso tornara-se assombroso no clima da época.

Poucos anos mais tarde, a Carta de Direitos viu-se enriquecida pela Lei do Habeas Corpus, de 1679, que tinha como título “Lei para melhor assegurar a liberdade do súbdito e para evitar a prisão no ultramar”. A Constituição Americana toma-o de empréstimo da Common law inglesa, ao dispor que “não se suspenderá o habeas corpus”, salvo em caso de rebelião ou invasão. Numa decisão unânime, o Supremo Tribunal dos EUA defendeu que os direitos garantidos pela Lei foram “considerados pelos pais fundadores como a mais alta salvaguarda da liberdade”. Todas essas palavras deveriam ter ressonância hoje em dia.

A Segunda Carta e os Bens Comuns

A significação da carta que a acompanhava, a Carta da Floresta, não é menos profunda e talvez seja até mais relevante, hoje, como Peter Linebaugh investigou em detalhe, na sua estimulante história, ricamente documentada, da Magna Carta, e sua trajetória posterior. A exigia a proteção dos bens comunais dos poderes exteriores. Os bens comunais eram fonte de sustento da população geral: o seu combustível, os seus alimentos, os seus materiais de construção, tudo o que fosse essencial à vida. O floresta não era a selva primitiva. Havia sido cuidadosamente desenvolvido ao longo de gerações, mantido em comum, com as suas riquezas à disposição de todos, e preservado para as futuras gerações: práticas que se encontram hoje fundamentalmente em sociedades tradicionais ameaçadas em toda parte do mundo.

A Carta da Floresta impunha limites à privatização. Os mitos de Robin Hood capturam a essência das suas preocupações (e não é em nada surpreendente que a popular série de TV dos anos 50, As Aventuras de Robin Hood, tenha sido escrita anonimamente por diretores de Hollywood perseguidos e postos na lista negra do Macartismo por conta das suas convicções esquerdistas). Já no século XVII, no entanto, esta Carta tinha sido vítima da ascensão da economia mercantil e das práticas e da moralidade capitalistas.

Com a perda da proteção do cuidado e do uso comuns dos bens comunais, os direitos humanos viram-se restringidos ao que não podia privatizar-se, uma categoria que continua minguando, até à sua invisibilidade prática. Na Bolívia, a tentativa de privatização da água foi finalmente derrotada por um levantamento popular que conduziu ao poder, pela primeira vez na sua história, a maioria indígena. O Banco Mundial acaba de emitir a autorização para que a empresa mineira multinacional Pacific Rim possa proceder com sua queixa contra El Salvador, por ter tratado de preservar terras e comunidades de uma empresa mineira de ouro extremamente destrutiva. As restrições de ordem ambiental ameaçam com a privação para a empresa de lucros futuros, delito que deve ser punido de acordo com as regras que o regime de direitos dos investidores etiquetou como “livre comércio”. E isso não é mais que uma minúscula amostra das lutas em curso em boa parte do mundo, algumas das quais engendram extrema violência, como no Congo Oriental, onde se mataram milhões de pessoas nos últimos anos para se assegurar os componentes minerais dos telemóveis e de outros aparelhos, e, claro, os lucros gigantescos.

A ascensão das práticas e da moralidade capitalistas implicaram uma revisão radical no tratamento dos bens comuns, e também na sua conceção. A visão predominante hoje reproduz o argumento influente de Garrett Hardin, segundo o qual “a liberdade dos bens comunais termina por nos arruinar a todos”: o que não tem propriedade será destruído pela avareza individual.

O equivalente desse argumento, no âmbito do direito internacional, cai sob o conceito de terra nullius, empregado para justificar a expulsão das populações indígenas nas sociedades coloniais da América inglesa e espanhola, ou o seu extermínio, tal como os pais fundadores da república dos Estados Unidos descreveram o que estavam a fazer, às vezes com remorsos. De acordo com essa doutrina tão útil, os índios não tinham direito de propriedade, visto que não eram mais que nómadas numa agreste natureza virgem. E os colonos que trabalhavam duro podiam criar valor ali onde não havia, dando um uso comercial a essa mesma natureza virgem.

Na realidade, os colonos eram mais espertos e houve procedimentos elaborados de aquisição e ratificação por parte da coroa e do parlamento, posteriormente anulados pela força, quando essas criaturas malvadas resistiram ao seu extermínio. A doutrina atribui tais mecanismos, amiúde, a John Locke, mas isso é duvidoso. Como administrador colonial, ele entendeu o que estava a acontecer e não há base nos seus escritos para atribuir-lhes tal coisa, como os especialistas académicos contemporâneos estabeleceram, de forma convincente, e em especial a obra do especialista australiano Paul Corcoran (foi, de facto, na Austrália onde essa doutrina se aplicou com maior brutalidade).

As sombrias previsões da tragédia dos bens comunais não se deram sem resistência. Elinor Olstrom foi agraciada em 2009 com o Prémio Nobel de Economia por trabalhos que demonstravam a superioridade da gestão de pescarias, pastos, florestas e fontes de água subterrâneas, por parte dos seus utentes. Mas a doutrina tem força se aceitamos sua premissa implícita: que os seres humanos estão cegamente impulsionados pelo que os trabalhadores norte-americanos, no início da revolução industrial, chamaram com amargura de “o Novo Espírito de Época: torna-te rico e esquece-te de tudo, menos de ti mesmo”.

Assim como os camponeses e trabalhadores ingleses antes deles, os trabalhadores norte-americanos denunciaram este Novo Espírito que se lhes impunha, julgando-o degradante e destrutivo, e um ataque à própria natureza dos homens e mulheres livres. E saliento o caso das mulheres; entre as mais ativas e eloquentes na condenação da destruição dos direitos e da dignidade das pessoas livres por parte do sistema industrial capitalista estavam as “meninas das fábricas”, jovens procedentes das propriedades rurais empobrecidas. Elas também se viram esmagadas por um regime de trabalho assalariado supervisionado e controlado, que se considerava, à época, distinto do cativeiro só porque era temporário. Essa condição era considerada tão natural que se converteu no lema do partido republicano, uma bandeira levantada pelos trabalhadores do norte durante a Guerra Civil norte-americana.

Controlar o desejo de democracia

Isso aconteceu há 150 anos. Na Inglaterra, aconteceu antes. Tem-se dedicado grandes esforços para meter o Novo Espírito da Época na cabeça das pessoas. Há setores de grande importância que se concentram nesta tarefa: o de relações públicas, a publicidade, os operadores do mercado, o partido Republicano, todos esses supõe-se que respondem por parte muito importante do Produto Interno Bruto. Dedicam-se ao que um grande economista político denominou “fabricação de necessidades”. No mundo dos mesmos dirigentes empresariais, a tarefa consiste em comandar as pessoas para que elas se dirijam a “coisas superficiais” da vida, como “o consumo ou a moda”. Dessa forma, pode atomizar-se as pessoas, procurando só a ganância pessoal, afastando-as dos perigosos esforços de pensarem por si mesmas e de questionarem essas autoridades.

O processo pelo qual se molda a opinião, as atitudes e as perceções foi chamado de “engenharia do consentimento” por um dos fundadores da moderna indústria de relações públicas, Edward Bernays. Bernays foi um respeitado progressista de Wilson-Roosevelt-Kennedy, muito do estilo de seu contemporâneo, o jornalista Walter Lippmann, o mais destacado intelectual público do século XX nos EUA, que alardeava “a fabricação do consentimento” como a “nova arte” na prática da democracia.

Ambos entenderam que há que se “pôr o público no seu lugar”, marginalizado e controlado, segundo o seu próprio interesse, claro. As pessoas seriam demasiado “estúpidas e ignorantes” para que se lhes permitisse a administração das suas próprias coisas. A tarefa devia recair na “minoria inteligente”, a qual se deve proteger do “atropelo e dos rugidos do rebanho perplexo”, nos “intrusos intrometidos e ignorantes”, na “multidão canalha”, como o denominavam os seus predecessores no século XVII. O papel da população em geral consistia em tornarem-se “expectadores”, não em “participantes da ação”, numa sociedade democrática que funcione como é devido.

E não se deve deixar que os expectadores vejam em demasia. O presidente Obama estabeleceu novos padrões para salvaguardar esse princípio. De facto, ele tem punido mais denunciantes de desmandos que todos os demais presidentes anteriores, uma verdadeira conquista para uma administração que chegou ao poder prometendo transparência. O Wikileaks não é mais que o caso mais célebre, com a cooperação dos britânicos.

Entre as muitas questões que não são assunto do rebanho desnorteado está a política externa. Quem quer que tenha estudado documentos secretos terá descoberto que em boa medida a sua confidencialidade estava destinada a proteger funcionários públicos do julgamento da opinião pública. No plano nacional, a escumalha não deveria escutar o conselho que os tribunais dão às grandes empresas: que estas deveriam dedicar alguns esforços visíveis às boas ações, de modo que “a população esclarecida” não se dê conta dos imensos benefícios concedidos a essas corporações pelo estado maternal. De modo mais geral, o público norte-americano não deveria inteirar-se de que as “medidas políticas do Estado são brutalmente regressivas, com o que reforçam e estendem a desigualdade social”, ainda que sejam desenhadas de forma que conduzam a “que as pessoas pensem que o governo ajuda somente aos pobres, que não o merecem, permitindo assim que os políticos mobilizem e explorem a retórica e os valores antigovernamentais, mesmo quando continuam a canalizar apoio aos seus eleitores melhor situados”....cito isso da principal revista mainstream, a Foreign Affairs, não de um jornalzinho radical.

Com o tempo, conforme as sociedades se tornavam mais livres e o recurso da violência do Estado mais constrangido, o impulso de conceber métodos sofisticados de controle das atitudes e da opinião não fez senão crescer. É natural que a imensa indústria de relações públicas tenha sido criada nas sociedades mais livres, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. A primeira agência de propaganda moderna foi até há um século o Ministério da Informação britânico, que definiu de modo secreto o seu trabalho, em termos de “dirigir o pensamento da maioria do mundo” – sobretudo os intelectuais progressistas norte-americanos, que se tinham mobilizado para apoiar a Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial.

O seu homólogo norte-americano, o Comité de Informação Pública, foi formado por Woodrow Wilson para levar uma população pacifista ao ódio violento a qualquer alemão...com notável êxito. A publicidade comercial norte-americana impressionou profundamente outras pessoas. Goebbels admirava-a e adotou-a na propaganda nazi, com muitíssimo êxito. Os dirigentes bolcheviques tentaram fazê-lo, mas os seus esforços foram torpes e ineficazes.

Uma tarefa interna primordial tem consistido sempre em “manter o público fora das nossas gargantas”, como o ensaísta Ralph Waldo Emerson descreveu as preocupações dos dirigentes políticos à medida que a ameaça à democracia ia tornando-se mais difícil de suprimir, nos meados do século XIX. Mais recentemente, o ativismo da década de 1960 gerou inquietação com uma “excessiva democracia” e teve como reação medidas que impuseram uma “moderação maior” na democracia.

Uma preocupação em particular consistiu em introduzir melhores controles sobre as instituições “responsáveis pela doutrinação dos jovens”: escolas, universidades, igrejas, que se considerava que estavam a fracassar nesse trabalho essencial. Estou a citar reações de um representante da extrema esquerda liberal dentro do espectro dominante, os internacionalistas liberais, que mais tarde nutriram a administração Carter e os seus homólogos de outras sociedades industriais. A ala direita era muito mais áspera. Uma das muitas manifestações desse impulso consistiu no aumento brusco das mensalidades universitárias, que não se baseavam em razões económicas, como se pode facilmente demonstrar. O mecanismo, no entanto, amarra e controla bem os jovens, mediante o endividamento, em regra por toda a vida, contribuindo assim para um doutrinamento mais eficaz.

O povo dos três quintos

Para ir um pouco além com estes temas de grande importância, observamos que a destruição da Carta da Floresta, e o seu desaparecimento da memória estão muito mais estreitamente relacionados aos esforços para restringirem a promessa da Carta de Direitos. O “Novo Espírito da Época” não pode tolerar a conceção pré-capitalista de floresta, como fundo compartilhado de bens comuns, da comunidade no seu conjunto, cuidado de forma comum para o seu uso e das gerações futuras, protegido da privatização para que sirva à opulência, não às necessidades. Inculcar o Novo Espírito constitui um requisito essencial para se alcançar esse objetivo, assim como para impedir que a Carta de Direitos seja utilizada mal, por parte dos cidadãos, para determinarem o seu próprio destino.

As lutas populares para criar uma sociedade mais livre e justa depararam-se com a resistência oferecida pela violência, pela repressão e pelos esforços massivos para controlar a opinião e as atitudes. Com o tempo, no entanto, têm desfrutado de êxito considerável, ainda que haja um grande caminho a ser percorrido e, amiúde, encontremos retrocessos. Estes existem, na realidade, agora mesmo.

A parte mais famosa da Carta de Direitos é o artigo 39, que declara que “não se punirá de modo algum ao homem livre” nem “procederemos contra ele ou o perseguiremos, salvo mediante o devido processo dos seus iguais e por meio da lei em vigor no lugar”.

Graças a muitos anos de luta, o princípio conseguiu sustentar-se de forma mais ampla. A constituição dos EUA estabelece que nenhuma pessoa “seja privada da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido processo legal e um juízo rápido e público” por parte dos seus iguais. O princípio básico reside na “presunção de inocência” – o que os historiadores do direito descrevem como “a semente da liberdade anglo-americana contemporânea”, referindo-se ao artigo 39, e tendo em mente o Tribunal de Nuremberga, uma “variedade especialmente norte-americana de legalismo: o castigo unicamente para aqueles cuja culpabilidade se demonstrou mediante um julgamento justo, com uma série de proteções procedimentais”, embora não haja dúvidas da sua culpabilidade por alguns dos piores crimes da história.

É claro que os pais fundadores não tinham a intenção de que o termo “pessoa” se aplicasse a todas as pessoas. Os nativos norte-americanos não eram pessoas. Os seus direitos eram praticamente nulos. As mulheres eram escassamente pessoas. Entendia-se que as esposas fossem “cobertas” pela identidade civil de seus maridos, do mesmo modo que as crianças estavam sujeitas a seus pais. Os princípios de Blackstone sustentavam que “o ser mesmo ou a existência legal da mulher se suspendem mediante o matrimónio, ou ao menos se incorporam ou consolidam naquele do marido: sob a proteção e cobertura deste, ela leva a cabo qualquer atividade”. As mulheres são, portanto, propriedade dos seus pais e dos seus maridos. Esses princípios continuaram em vigor até há poucos anos. Até a decisão do Supremo Tribunal, de 1975, as mulheres sequer gozavam do direito legal de tomar parte num júri popular. Não eram iguais. Há duas semanas, a oposição republicana bloqueou a Lei de Justiça Salarial [Fairness Paycheck Act] que garantia às mulheres salário igual a trabalho igual. E vai muito além.

Os escravos, é claro, não eram pessoas. Eram com efeito humanos só em três quintos das partes, de acordo com a Constituição, para poder assim outorgar aos seus proprietários maior poder de voto. A proteção da escravidão não foi uma preocupação menor dos pais fundadores: foi um fator que conduziu à revolução norte-americana. Em 1772, no caso Somerset, Lord Mannsfield determinou que a escravidão é tão “odiosa” que não se podia tolerá-la na Inglaterra, embora continuasse em vigor, durante muitos anos, nas colónias britânicas. Os proprietários de escravos norte-americanos viram claramente o que se avizinhava nas colónias sob o domínio britânico. E há que se recordar que os estados escravocratas, inclusive a Virgínia, dispunham de maior poder e influência nas colónias. Pode-se entender facilmente a célebre ironia do Doutor Johnson, segundo a qual “ouvimos os gritos mais as liberdades berrantes dos proprietários de negros”.

As emendas posteriores à Guerra Civil estenderam o conceito de pessoa aos afroamericanos, acabando com a escravidão. Ao menos em teoria. Depois de cerca de uma década de relativa liberdade, reintroduziu-se uma situação semelhante à escravidão graças a um pacto Norte-Sul que permitia a efetiva criminalização da vida dos negros. Um homem negro na esquina de uma rua podia ser detido como vagabundo, ou por tentativa de estupro, caso olhasse para uma mulher branca de modo equivocado. E, uma vez no cárcere, tinha poucas possibilidades de escapar do sistema de “escravidão com outro nome”, termo utilizado pelo então chefe de redação do Wall Street Journal, Douglas Blackmon, no conhecido estudo.

Esta nova versão da “instituição peculiar” proporcionou boa parte da base da revolução industrial norte-americana, com uma perfeita mão de obra para a indústria de aço e mineração, junto à produção agrícola nas famosas cordas de presos encadeados: dóceis, obedientes, sem greves e sem necessidades de que os seus patrões sustentassem sequer os seus trabalhadores; um aperfeiçoamento da escravidão. O sistema durou em boa medida até a Segunda Guerra Mundial, quando se tornou necessário o trabalho livre para a produção bélica.

O auge do pós-guerra proporcionou empregos. Um homem negro podia conseguir trabalho numa fábrica de automóveis sindicalizada, ganhar um salário decente, adquirir um casa e, talvez, enviar os seus filhos à universidade. Isso durou uns vinte anos, até a década de 1970, quando a economia voltou a desenhar-se de forma radical, de acordo com os novos princípios neoliberais dominantes, com o rápido crescimento da financiarização e o deslocamento da produção industrial. A população negra, hoje em boa medida supérflua, voltou a ser criminalizada.

Até à presidência de Ronald Reagan, o encarceramento nos EUA encontrava-se no nível do das sociedades industriais. Hoje encontra-se a grande distância das demais. Toma como objetivo primordial os homens negros, e cada vez mais as mulheres negras e hispânicas, em boa medida culpadas de delitos sem vítimas, dentro das fraudulentas “guerras das drogas”. Entretanto, a riqueza das famílias afroamericanas foi praticamente apagada pela crise financeira atual, em não pouca medida graças ao comportamento criminoso das instituições financeiras, com impunidade para os seus perpetradores, hoje mais ricos do que nunca.

Se se observa a história dos afroamericanos desde a chegada dos primeiros escravos há quase 500 anos até hoje, eles só desfrutaram da autêntica condição de pessoas durante poucas décadas. Ainda há um longo caminho para se realizar a promessa da Magna Carta.

Artigo publicado no Guardian, traduzido por Katarina Peixoto para Carta Maior

(Este artigo é a primeira parte do texto de Noam Chomsky – a segunda parte já foi publicada pelo Guardian)

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Sobre o/a autor(a)

Linguista, filósofo e activista político americano
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