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Astúrias: Vivam os Mineiros! Por Luis Sepùlveda

Ao mesmo tempo que Espanha aceitava um resgate dos seus bancos de 100 mil milhões de euros, reduzia em 63% os fundos destinados a preservar a atividade mineira até 31 de Dezembro de 2018. Isto quer dizer fechar as minas, matar a atividade, uma cultura do trabalho, e condenar as cidades e aldeias das bacias mineiras ao êxodo dos seus habitantes. Nunca uma greve mineira foi tão justa e necessária.
"Marcha do carvão", junção das colunas de mineiros das Astúrias e de Leão - Foto CC OO

Hoje, segunda-feira 18 de Junho, o dia amanheceu nublado nas Astúrias e isto é normal na região verde de Espanha. À medida que nos afastamos da costa, vamos atravessando prados de um verde intenso, montes que desaparecem entre a neblina, e o «orbayu», uma chuvinha suave, tão ténue como um manto de seda húmida, apropria-se de tudo o que toca, cobrindo-o com a pátina de água fina que é como que o dote eterno das Astúrias.

Não é necessário afastar-se da costa mais que uns 30 quilómetros para chegar à região mineira, «à bacia», a cidades de edifícios comprimidos como Mieres e Langreo que, como todos os vilarejos e aldeias, pararam hoje numa greve geral de solidariedade com os mineiros do carvão.

Estamos no ano de 2012, o ano da pior crise provocada pelos especuladores e pelos banqueiros, por esse miserável 1% da humanidade que se apropriou de 99% da riqueza planetária. É o ano da desesperança e do fechar-se em si próprio pensando em como salvar-se, mesmo à custa dos outros, é o ano do egoísmo e da desumanização geral. Mas nas bacias mineiras desempoeiraram a velha bandeira da solidariedade de classe. Sim, da Solidariedade de Classe, porque as diferenças de classe hoje são mais fortes que nunca, embora alguns defendam que isso é história e que a história morreu.

A história continua viva nas bacias mineiras e a adesão à greve foi de 100%, não só nas Astúrias mas em todas as regiões de Espanha que têm minas de carvão. As explorações de carvão, hulha e antracite, as minas e o trabalho dos homens que descem até às profundezas escuras da terra foram sempre moeda de troca para os governantes de Espanha. Já em 1962, quando a Espanha franquista era aceite na Comunidade Económica Europeia, antecessora da atual União Europeia, o ditador confiava ao seu primo e secretário militar Francisco Franco Salgado-Araujo, que as minas de carvão espanholas tinham os dias contados porque a Europa queria favorecer as explorações na bacia do Ruhr, na Alemanha, e na Polónia, cujas jazidas, apesar da Guerra Fria, garantiam um fornecimento mais barato. A resposta dos mineiros foi a primeira grande greve depois da derrota da República e do estabelecimento do regime fascista nacional-católico. Em 1962 os mineiros venceram, conservaram os seus postos de trabalho, embora as represálias tenham sido brutais.

Cinquenta anos mais tarde, as velhas bandeiras da Solidariedade de Classe agitam-se mais uma vez sob o céu cinzento das Astúrias, desta vez em defesa do mais inalienável dos direitos: O Direito ao Trabalho. A um trabalho que é como uma maldição ou como coisa muito difícil de explicar, porque a mina se mete nas veias dos homens escuros do carvão, e é-se mineiro, filho de mineiro, neto de mineiro, de uma atividade que foi declarada «não rentável» a partir de algum cómodo e impoluto escritório de Londres ou de Bruxelas. À mina, ao poço, chega-se muito cedo, os mineiros mudam de roupa entre piadas, por umas correntes baixam as suas roupas de trabalho, o fato-macaco enegrecido, o capacete com a lâmpada, as luvas de segurança, as pilhas para as lâmpadas, as botas de pontas reforçadas, e depois as correntes sobem levando as roupas que voltarão a vestir quando saírem do poço. E às vezes uma sirene uiva a tragédia e uma corrente não volta a descer. Isto, certamente, «não é rentável».

Uma vez equipados, dirigem-se para a entrada do poço, já não brincam pois a entrada da mina impõe respeito e temor até aos mais veteranos. Um elevador metálico, «a gaiola», fá-los descer em direção à escuridão densa da galeria principal, e aí se instalam num minúsculo comboio que os conduz a outras galerias menores. A escuridão da mina é densa e pegajosa, tal como o ar, impregnado de humidade, e por sobre as vozes dos mineiros e o entrechocar das suas ferramentas impõe-se o ranger do monte, o gemido da intimidade da terra e a sua ameaça constante de se vir abaixo. Isto, certamente, «não é rentável».

Pelas galerias menores avançam os mineiros, as suas lâmpadas perfuram a escuridão espessa e chocam com as paredes de rocha impregnadas de água. O ar torna-se cada vez mais denso, e assim chegam até aos filões, a que acedem primeiro de pé, depois dobrados, mais tarde rastejando, e então cospem para as mãos e começam o seu trabalho de arrancar o carvão, a hulha e a antracite às entranhas da Terra. Os picadores veem desaparecer os seus músculos sob uma camada de pó, as brocas abriram os orifícios onde se metem as cargas de explosivos. A um sinal do dinamiteiro, todos os homens retrocedem até aos locais de refúgio, aí se encolhem encostados uns aos outros, protegendo os ouvidos, até que a detonação faz estremecer o ar e uma nuvem de pó preto os envolve. Isto, certamente, «não é rentável».

Quando no fim do dia de trabalho saem das gaiolas que os fizeram subir até à superfície terrestre, os mineiros vão ao bar e pedem que lhes sirvam uma sidra, e o bar vive dos mineiros, outros vão à farmácia e a farmácia vive dos mineiros, outros compram um vestido para a filha ou um livro, e todos os negócios das bacias mineiras vivem dos mineiros. O trabalho de cada um desses homens escuros permite e possibilita a existência de muitos outros postos de trabalho. Tudo o que se faz nas cidades, aldeias e vilarejos das bacias mineiras depende das minas, e considerar esta realidade, certamente, «não é rentável».

Em 1985 o PSOE chegou ao poder e as minas de carvão davam emprego a quase 53 mil mineiros. Um ministro socialista, Solchaga, explicou com breves palavras em que consistiriam as grandes mudanças que seriam implementadas: «Espanha é um país para fazer dinheiro». E assim foi, efetivamente. No caso da mineração, a possibilidade de fazer dinheiro, de fazer lucro, começou a verificar-se obedecendo às instruções dos manda-chuvas da Europa, e Espanha começou a importar carvão. Nunca se explicou cabalmente por que motivo o carvão que chega da Polónia, ou da maior mina do mundo a céu aberto, Cerrajón, na Guajira colombiana, é melhor e menos contaminante que o carvão asturiano. E se o é, nunca se destinaram os fundos suficientes para investigar como tornar mais eficaz e menos contaminante um sector energético fundamental.

Seguindo as instruções dos mercados energéticos, tanto o Partido Popular como o PSOE se caracterizaram pelo tratamento demagógico do tema mineiro. Se o carvão estava definitivamente condenado, deveriam ter sido fomentadas políticas efetivas de reconversão industrial que garantissem trabalhos dignos e qualificados àqueles que abandonariam as minas. Estas políticas não existiram. Em vez disso optou-se por pré-reformas aparentemente muito generosas, mas sem considerar que a atividade mineira é uma cultura, herda-se, e mesmo que pareça contraditório os filhos dos mineiros e os netos dos mineiros sempre se consideraram seguidores do trabalho dos seus antecessores. A mina mete-se no corpo, apodera-se da alma, e esta consideração que não se fez, impediu que dessas pré-reformas vivessem os filhos e os netos dos mineiros, porque não se sai da mina para ocupar o lugar do vendedor de fruta, do padeiro, do funcionário da farmácia ou do empregado que serve a sidra.

Na ausência de uma solução coerente, os mineiros agarraram-se aos seus postos de trabalho e a atividade começou a ser subsidiada pela União Europeia. Hoje, em 2012, a massa laboral mineira está reduzida a menos de oito mil mineiros distribuídos por quarenta e sete explorações. E a exploração caiu de 20 milhões de toneladas para pouco mais de 8 milhões e 500 mil toneladas. A política energética europeia decidiu acabar com os subsídios públicos ao sector mineiro no fim de 2014, mas a pressão exercida pelos mineiros conseguiu que se mantivesse até 31 de Dezembro de 2018. Segundo os cálculos dos empresários e dos mineiros, estes anos seriam suficientes para que na Europa se começasse a pensar se era lógico ter reduzido a produção global europeia de carvão de 130 milhões de toneladas, importando anualmente e em simultâneo mais de 160 milhões de toneladas, só que a «preços competitivos», ou seja, carvão produzido com custos laborais inaceitáveis por qualquer trabalhador da Europa ou dos Estados Unidos.

Os mineiros defendem, e com razão, que o carvão é uma reserva estratégica, de provisão autóctone, o que garante o fornecimento e, mais importante, assegura algo bastante combatido pelo mercado: uma reserva estratégica nacional.

E a todas estas considerações deve acrescentar-se que os mineiros estão a defender a existência das cidades e das aldeias das bacias mineiras. O pequeno e médio comércio, os serviços, tudo o que constitui a vida, o dia-a-dia de um núcleo de povoamento humano. E isso, certamente, «não é rentável».

O governo de Espanha, encabeçado por Mariano Rajoy, obcecado com uma redução do défice impossível de cumprir, impôs uma série de cortes sociais, de saúde, educação, reduções salariais, reformas laborais que embaratecem o despedimento, mas com uma grande generosidade para com os especuladores e os bancos. O antigo ministro Solchaga não estava enganado: Espanha é um país para fazer dinheiro e os especuladores fizeram-no, ganharam como nunca tinham ganho. Basta dizer que os bancos espanhóis mais fortes, integrantes do conglomerado anónimo chamado «Mercado», que usurpou funções estatais e desprestigiou a política, pediam dinheiro ao Banco Central Europeu com juros a 1% e, com esse dinheiro, em vez de abrir linhas de crédito para a pequena indústria e para a manufatura, compravam dívida pública espanhola com juros anuais de 5, 6 e 7%.

Seguindo esta linha de cortes a tudo o que beneficiava os trabalhadores, e ao mesmo tempo que Espanha aceitava um resgate dos seus bancos de 100 mil milhões de euros, reduzia em 63% os fundos destinados a preservar a atividade mineira até 31 de Dezembro de 2018. Isto quer dizer fechar as minas, matar a atividade, uma cultura do trabalho, e condenar as cidades e aldeias das bacias mineiras ao êxodo dos seus habitantes.

Nunca uma greve mineira foi tão justa e necessária. Hoje celebra-se o 22º dia de greve. Há vários mineiros fechados nas profundezas dos poços. Hoje Astúrias, o melhor das Astúrias, resiste uma vez mais. Hoje a palavra Greve adquire um significado novo, renovado, e o êxito demonstrado pela adesão a 100%, com todas as atividades das bacias mineiras paralisadas, demonstra que a Solidariedade de Classe continua viva e com as suas bandeiras erguidas.

Nasci no Chile, mas vivo nas Astúrias. Estes mineiros são meus compatriotas, são a minha gente e estou orgulhoso da sua luta e vontade de combate. Estão a dar uma lição de dignidade.

Vivam os Mineiros! Puxa Asturies!!!

Gijón, 18 de Junho de 2012

Artigo de Luis Sepùlveda, publicado em Carne de Blog columnas de Luis Sepùlveda. Tradução de Helena Pittapara esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Escritor chileno. Reside atualmente em Gijón, Astúrias, Espanha.
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