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A senhora Merkel e o governo europeu
Rui Tavares decidiu dar-me uma bicada na sua coluna do Público. Escreve ele o seguinte:
“até Francisco Louçã (no seu livro A Dividadura com Mariana Mortágua) declarando que um voto num governo europeu é ‘um voto sem sentido. Porque não tem democracia, não tem legitimidade, não tem soberania’ – ou seja, porque não, não, não. Basta olhar para os conselhos europeus para ver como são democráticos: manda Merkel.”.
A acusação é transparente: quem recusa um governo federalista europeu aceita o sistema actual, em que manda Merkel.
A acusação é transparente mas é fraquita. Por três razões.
A primeira é que não existe no mundo só a posição do arquipélago Coelho-Portas-Barroso-Merkel-Hollande, que querem que fique tudo como está, e a dos federalistas que, iluminados, querem o governo europeu. Eu sei que custa admitir que haja quem pense diferente de Rui Tavares, mas há mesmo europeístas que querem mais cooperação para economias convergentes, com responsabilidade comum e com dois níveis de cidadania – europeia e portuguesa. São os que sabem que Portugal é uma nação e a Europa não é, e a base da democracia que se conhece e reconhece é a nação. A democracia é reconhecimento e legitimação que se estabelecem sobre uma partilha comum - não abdicamos do direito de escolher o governo português e não nos reconhecemos como província europeia. Com o governo europeu, o parlamento nacional bem pode fechar as portas.
Curiosamente, foram os europeístas que exigiram o referendo sobre os Tratados fundamentais da União. Quiseram democracia. Curiosamente, foram os federalistas do governo europeu, como António José Seguro, que recusaram sempre que a população fosse consultada sobre os seus destinos e os da Europa. São os europeístas quem tem defendido a democracia e os federalistas quem a tem recusado.
Por isso, devolvo a acusação: quem quer uma Europa com democracia respeita os dois níveis da decisão democrática, com governos e parlamentos nacionais e com coordenação europeia (com duas câmaras ou com um parlamento reforçado). O federalismo não é democrático porque despreza a base da democracia.
A segunda razão é a sensatez. Democracia europeia para um governo europeu é a salvação da Europa, argumenta Rui Tavares. Mas o governo europeu é simplesmente a senhora Merkel com mais poder: a direita dominou todas as eleições para o Parlamento Europeu e não é preciso ser adivinho para saber quem chefiaria o governo europeu. “Manda Merkel”, mas manda ainda mais. Por tudo isto, o pedido de um governo europeu é simplesmente isto: o governo alemão que tome conta de nós. Um governo europeu seria o poder mais forte da economia mais liberal.
É por isto que as eleições gregas são tão importantes e é por isto que a Syriza provoca tantos ódios, do PS aos Verdes europeus. É a primeira vez que há a possibilidade de um governo de esquerda na Europa para fazer frente a Merkel e à devastação liberal e autoritária. Essa esquerda não pede a Merkel que governe a Grécia a partir de um governo europeu. Quer reconstituir a Europa fazendo frente ao capital financeiro. E não há outra forma de criar a Europa.
A terceira razão que torna esquisita a acusação feita por Rui Tavares é que ele conhece bem a esquerda europeísta que recusa o governo europeu. Ainda se deve lembrar: foi eleito por uma lista europeísta do Bloco de Esquerda que defendia precisamente o que agora ele rejeita e que rejeitava o que ele agora defende. Os votos que o elegeram foram dados a um programa que recusava a via do Tratado de Lisboa, com o seu diretório (que os Verdes europeus aprovaram) e a via federalista do governo europeu (que os Verdes defendem também), exigindo em contrapartida políticas sociais e económicas de cooperação para o emprego, com uma coordenação parlamentar com poderes efetivos.
Nessa altura, Tavares não disse aos eleitores que rejeitar o governo europeu era defender Merkel. Assinou o contrário, um programa que enfrentava Merkel recusando dar-lhe poderes de governo europeu e exigindo uma refundação da Europa, das suas instituições e das suas políticas. Mas isso, é claro, foi noutro tempo e noutra oportunidade.
Comments
Caro Francisco, podemos
Caro Francisco, podemos evidentemente discordar num tema tão crucial quanto este — e isso não é uma "acusação", calma aí, é uma discordância. O que não podes esquecer é que eu sempre defendi que a construção de uma democracia europeia é uma grande prioridade da esquerda, antes, durante e depois de ter feito parte da delegação do Bloco de Esquerda. Referi-me a ela em crónicas bem antes de ser candidato, e tu conhecias essas crónicas, bem como o Miguel Portas, que me convidou a fazer parte da lista. Usei a expressão quando anunciei que aceitava ser candidato num artigo de jornal. "Construir a democracia europeia" foi a segunda frase que disse no meu discurso de apresentação de candidatura, na abertura da campanha em 2009, no São Luiz. E foi com "é preciso fazer a democracia europeia, já, aqui e agora", que terminei o discurso. Insinuações de duplicidade, — ou essas sim acusações —, não colam aqui, e são facilmente refutadas com documentos.
Duplicidade sim, e agora
Duplicidade sim, e agora "habilidade" saloia, Rui Tavares:
Com frases como "construir a democracia europeia", ou "é preciso fazer a democracia europeia, já, aqui e agora" podemos muitos estar de acordo. Nenhuma destas frases significa federalismo europeu, ou Europa federal, e muito menos que a democracia europeia se constroi só com o federalismo, como agora defende abertamente. Não trate os outros como estúpidos.
Ninguém lhe negaria o direito de mudar de ideias, mas se tivesse sido isso teria abandonado o lugar. Foi mandatado por portugueses para defender ideias diferentes, ou julga que foi por causa dos seus lindos olhos?
(continuação) O resto pode
(continuação) O resto pode ser discordância. Achas que defender a democracia europeia é "dar poderes de governo a Merkel". Eu digo que poderes de governo é o que Merkel tem agora, e que salvo uma saída do euro continuará a tê-los. Por outro lado, num cenário de uma Europa democrática, eu digo que Merkel não ganharia eleições. São opiniões. No meu caso, as mesmas que sempre tive.
Se Rui Tavares por
Se Rui Tavares por discordância tivesse resignado, seria um acto que muito o dignificaria.
Ser eleito na base de um
Ser eleito na base de um programa e de um projeto, apoiado por eleitores que acreditaram e acreditam nestes pressupostos e depois transferir-se para outro programa e outro projeto mas não tendo coragem para colocar à disposição do Bloco de Esquerda o seu lugar é mais que elucidativo........as atitudes ficam com quem as praticam, pois claro......
Posso entrar? Rui, tu
Posso entrar?
Rui, tu defendes a democracia europeia.
Não vale tentar esbater o que é confronto sério: afirmas e reafirmas que afirmaste e afirmas defender a democracia europeia. Mas a questão é que,numa federação europeia, não há democracia, como aliás agora também apenas existe um esboço formal da mesma ou então não estaríamos atirados para os braços da Merkel pelos tratados todos. Precisamos de cidadania europeia numa Europa composta por nações todas iguais no plano institucional e todas diferentes no plano histórico/cultural. É esse o caminho da refundação da Europa que começará por acabar com a troika de Merkel e seus súbditos.
A Europa merkelizada prepara a federação merkelizada. A GRANDE nação "americana" acabou com os índios antes de se federar. A GRANDE nação brasileira acabou com os índios antes de se federar. Havia ( um autor que falava da grande Nação europeia, "um império de 400 milhões de homens"; chamava-se Jean Thiriart...
É um prazer ler um artigo que
É um prazer ler um artigo que me obrigue a raciocionar e que me traga clareza sobre o caminho que pudemos seguir em que a justiça seja o "farol" das nossas acções.
Fico extremamente triste e desiludido quando se entra na chamada "lavagem de roupa suja".
Não nego que estou muitissimo mais próximo de Louçã do que de Rui Tavares mais que não seja pela "obra feita". Também entendo que o Rui Tavares não teve a melhor atitude quando saiu do BE pois se algo era passivel de mudança, deveria ter continuado a lutar com quem nele confiou e que o ajudou a eleger pois só assim poderiamos sair mais reforçados. De qualquer forma, nutre uma imensa admiração por ambos. Um abraço.
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