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Certificado de ignorância para Nuno Crato

A forma como o governo PSD-CDS tem vindo a destruir os percursos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências em Portugal denotam uma visão autoritária, elitista das aprendizagens, confusa do que são os dispositivos de formação e irreal do emprego em Portugal.

Ainda sem conhecer o resultado do seu estudo encomendado, o governo decidiu detonar o dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC). Aliás, este era um desfecho que já se esperava, ainda que o governo tenha tentado colocar a decisão no plano técnico, desresponsabilizando-se da decisão política. Mas quem não se lembra de Passos Coelho a dizer que a certificação de competências era uma certificação da ignorância? E quem não se lembra de Nuno Crato ter dito que não apreciava o projeto? Por isso não há surpresa no facto de em dezembro de 2011 se ter encerrado dezenas de CNO e despedido centenas de técnicos, nem há surpresas no facto de o governo ter preparado agora uma forma de encerrar todos os restantes, cortando-lhes o financiamento. Talvez Nuno Crato e Passos Coelho não saibam, mas destruir os projetos de RVCC revela uma extrema ignorância sobre o projeto e sobre a formação profissional em Portugal.

Façamos uma pequena contextualização: os processos de reconhecimento, validação e certificação de competências baseado no balanço de competências e na narrativa autobiográfica é um modelo inspirado do modelo francês de bilan de compétences, há décadas em funcionamento. Em Portugal, o corpo teórico destes dispositivos começa a construir-se desde a década de 90 e os primeiros Centros RVCC, implementam-se em 2000, ainda como estudo-piloto. São, por isso, bastante anteriores à massificação estatística que Sócrates quis imprimir com os CNO.

A base deste processo de certificação de competências assenta em dois pressupostos: 1) a constatação de uma décalage entre aquilo que são as competências e os saberes exibidos pelos trabalhadores e aquilo que são as suas qualificações certificadas; 2) o reconhecimento de que as aprendizagens são feitas por processos formais, não-formais e informais. Isto é, a aprendizagem surge dos vários contextos e papéis - é longitudinal e latitudinal – e garante a aquisição de competências, conhecimentos e diferentes saberes.

O dispositivo RVCC é diferente de todos os outros existentes em Portugal. Enquanto os EFA, as formações modulares, os Cursos Profissionais, os CEF, etc., assentam na ideia de transmitir e formar competências, o RVCC tem como objetivo a certificação das competências já existentes e adquiridas durante todo o processo de aprendizagem ao longo da vida. Por isso mesmo é que Crato e Passos Coelho mostram o seu elitismo. Eles recusam a ideia de que é possível aprender com experiências não-formais e/ou informais e, pior ainda, transmitem a ideia de que apenas se pode reconhecer as aprendizagens resultantes dos percursos formais de educação, o que ataca brutalmente todos aqueles que se viram privados de continuar a sua qualificação pela via formal de ensino.

O PSD e o CDS desconhecem tudo isto e, para justificar o seu preconceito, idealizaram o seu discurso. Dizem que têm um estudo que mostra que o reconhecimento e certificação de competências não se refletiu num aumento de empregabilidade. Digo eu: claro que não se refletiu dessa forma! Nem seria preciso encomendar estudos para concluir o que tantas investigações já tinham concluído. Mas convinha que dissessem a verdade toda. Os processo RVCC não garantiram o aumento de empregabilidade, assim como os EFA não o garante, assim como as Modulares não o garante, assim como as licenciaturas e os mestrados também não garante a empregabilidade. E já agora, as poucas propostas de formação que este governo já propôs, também não garantem qualquer tipo de empregabilidade. E sabem porquê? É que não é a formação que cria empregos; quem cria emprego é a dinamização económica, coisa que este governo não promove. Num país com 1 milhão de desempregados numa população ativa de 5 milhões, surpresa era que o RVCC garantisse empregabilidade!

Mas se continuarmos a discorrer sobre a verdade do assunto, também podemos dizer que muitas investigações e muitos estudos têm revelado que os processos RVCC têm impactos inquestionáveis nas variáveis identitárias, na apropriação de competências que o sujeito desconhecia ter, assim como na análise crítica da relação com o mundo e com o trabalho. Já para não falarmos que, se aplicado conforme o seu desenho teórico, o percurso RVCC é um dispositivo da maior importância no que toca à orientação vocacional, à exploração do investimento e à análise crítica e projetiva da relação sujeito-mundo. Só alguém profundamente desconhecedor é que ignora a importância deste processo para a relação do sujeito com a economia e com o emprego.

Não tenho qualquer dúvida que a massificação estatística a que foram colocados os percursos RVCC fizeram perder qualidade e propósito, havendo maior interesse no produto final – certificação e diploma – do que no processo – balanço de competências baseado no construtivismo de uma historicidade autobiográfica. Assim como não há qualquer dúvida de que Crato e Passos Coelho mostram uma profunda ignorância sobre o que é balanço de competências e certificação de competências já adquiridas.

Para finalizar, também não restam dúvidas sobre a importância do processo RVCC e sobre a necessidade de ser mantido como dispositivo formativo em Portugal, certamente com a necessidade de ser depurado de erros acumulados e que resultaram da ideia de transformar este processo em fábrica de diplomas. Mas a verdade é que o processo é bem mais do que isso e necessariamente mais do que isso e só não percebe a sua importância pessoal, social e económica quem tem uma visão mecânica e profundamente estéril da economia e do emprego.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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