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Museu do Neorealismo. Somos nós.

O Museu do Neorealismo, situado em Vila Franca de Xira, é uma boa história a ser contada para ilustrar o valor da participação cidadã na vida cultural e na criação de serviços públicos na área da cultura e da vida das cidades. Artigo de Maria José Vitorino.

Anda o sol de costas 
e as bruxas dançando 
e os ventos do norte 
sobre nós espalhando 
as tranças de morte.

As estrelas mortas 
apagam-se aos molhos: 
vem, lume perdido, 
florir-nos nos olhos.

 Carlos de Oliveira

Xácara das bruxas dançando

 I

Os centenários de Manuel da Fonseca e Alves Redol em 2011 deram ocasião a um reavivar do interesse público pelo Neorealismo e por este Museu. No mesmo ano, passaram os centenários de mais dois autores neorealistas, Afonso Ribeiro (Moimenta da Beira) e Políbio Gomes dos Santos.

O Museu, situado em Vila Franca de Xira, é uma boa história a ser contada para ilustrar o valor da participação cidadã na vida cultural e na criação de serviços públicos na área da cultura e da vida das cidades. Hoje instalado num edifício novo, projeto de arquitetura de Alcino Sousa Coutinho, nasceu de décadas de porfia e mobilizou recursos públicos, com destaque para os da Câmara Municipal, e, na fase da sua construção, alguns fundos europeus e nacionais a que o projeto se candidatou, mas também mobilizou recursos privados, concretizados em diversas formas: doações, apoios, patrocínios, disponibilidades e generosidades várias, e em que se destaca a ação da Associação Promotora do Museu e em particular do seu Presidente António da Mota Redol. Animaria, com a notícia e até a crítica do seu exemplo, outros movimentos cívicos ou profissionais a promover a criação de Museus e outros equipamentos culturais, com uma visão mais ampla que a da convencional inauguração pelas autoridades, e dedicados aos públicos que já existem e aos que eles próprios vão criando.

Só isto bastaria para querermos ver a sua história passada, presente e futura, e aprender com ela. Mas há mais.

 II

O Neorealismo vem-se revelando um ponto significativo do desenho da identidade de várias comunidades, geracionais mas também intergeracionais, locais, regionais, mas também nacionais e internacionais, em português mas também em outras línguas. E esta é uma das caraterísticas que a Arte costuma ter.

Em Portugal, e não só, as identidades à esquerda alimentam-se de muitos autores neorealistas. Na história da esquerda no séc. XX neste país, a resistência ressoa, não sempre mas muitas vezes, em música, traço, gesto e sobretudo palavra de obras neorealistas ou por elas influenciados, por adesão ou reação. E esta é uma das caraterísticas que a Cultura costuma ter.

Memória e História, Invenção, Criação e Estudo se associam para que este caso seja não apenas singular mas difícil de arrumar em estereótipos confortáveis, alinhando entre os percursos portugueses de oportunidade para a construção de um meio poderoso para o desenvolvimento futuro de ideias, perguntas e respostas. Se inseridos numa visão de cidade de todos, “sem muros nem ameias” como cantou o Zeca, garantirão que as gerações futuras terão meios melhores para se entenderem e sobretudo para se transformarem e transformarem a vida. E esta é uma das caraterísticas que a Política costuma poder ter.

Convive este Museu com outras entidades a que se poderá ligar em estratégias de trabalho em rede, por afinidade ou por descoberta de novos caminhos de interpretação e conhecimento. Mencionarei três casos que se podem distinguir com cabimento no desenvolvimento deste Museu:

1. entidades culturais dedicadas não apenas à criação artística que se pode designar de neorealista,mas também ao seu tempo e espaço de emergência, o de Portugal nos anos de chumbo que todos recordamos mas de que ainda falamos pouco, adiando o trabalho da memória para quando não nos doer tanto lembrar, não a luta nem a revolta, mas a escravidão, a pobreza, a repressão e a tristeza “que fazia as almas mais pequenas”, como dizia Sophia, que não consta que tenha sido neorealista mas era seguramente um poeta maior. Penso por exemplo na Casa da Achada/Mário Dionísio (Lisboa), no Museu Fortaleza de Peniche, no Museu da República e da Resistência (Lisboa), no Centro de Documentação  25 de Abril (Coimbra), nos Núcleos documentais da DGARQ/Torre do Tombo ou da Cinemateca Portuguesa, na Fundação/Casa José Saramago, na Associação Ferreira de Castro. Conhecer esta paisagem e animá-la com laços e correntes de ação e reflexão é uma desafio ao crescimento do Museu.

2. entidades que agem regularmente pela Memória coletiva, tantas vezes ameaçada de extinção, sobretudo quanto a passado recente, tais como o Movimento Não Apaguem a Memória, a AJA ou o recente projeto Amigos para Sempre, por exemplo... entre tantos!

3. contrariando alguma tendência mais paroquial que confunde atenção ao local e nacional com fechamento, agentes culturais de outros países; pela afinidade temática, ocorre referir os Museus Picasso (Málaga, Barcelona), a Fundación Rafael Albertí (Cádiz), a Casa-Museo Federico Garcia Llorca (Granada), o Museu do Cinema (Turim)...

 III

Tal como na vida de cada um, os rituais são relevantes, e no calendário organizamos o tempo da ação. Outros centenários destes homens e mulheres que se inscreveram no nosso “código genético cívico” vão, pela lei da vida, suceder-se proximamente: Jorge Amado (2012), Maria Keil (2014), Carlos de Oliveira (2021), por exemplo.

No parlamento português, 2011, ano de centenários, permitiu um voto unânime sobre Alves Redol, por iniciativa do BE. No Brasil, celebrou-se Maria Bonita, que perfaria 100 anos se fosse viva, extraordinária figura da “Rainha do Cangaço”, livro de Jorge Amado.

Por que é tão importante falar disto agora? Por que precisamos deste Museu para os próximos tempos? Por que não deve a Esquerda distrair-se e desleixar estes outros projetos de garantia contra o esquecimento e o empobrecimento do nosso património comum, agravado pelo desinvestimento no acesso de toda a gente ao que é de todos?

Na travessia das crises, nunca os poderosos ameaçados se enganaram sobre o perigo das artes e da cultura entre o povo, e com fundados motivos. Por isso as ideias e a batalha das ideias e das formas, envolvendo o que nos faz torna mais capazes de sentir e exprimir, longe de serem acessórias e dispensáveis, assumem papéis decisivos, porque sem elas estiolam razão e coração, e sem razões do coração (como escreveu Álvaro Guerra) qualquer guerra é perdida, e nela as gentes que somos.

 

Texto de Maria José Vitorino inspirado neste fragmento do filme "Sobre o Lado Esquerdo"com o poema de Carlos de Oliveira em voz de criança (Henrique Cardoso Martins). Está no Youtube.

 


 

Maria José Vitorino é Membro da Direção da Associação Promotora do Museu do Neorealismo. Integra a Comissão de Direitos e a Comissão Coordenadora Concelhia de Vila Franca de Xira do Bloco de Esquerda.

Comentários (1)

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