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Filha da Guerra
Nasci a 1 de abril de 1980. Seis anos após o 25 de Abril. E sou filha da Guerra Colonial.
O meu pai esteve em Moçambique. Nascido em Moimenta da Beira, filho adotivo de um homem extremamente rígido do regime, o meu pai alistou-se. Em abril de 1969, partiu para Luanda a bordo do navio Vera Cruz. No mesmo ano, fez a viagem, no navio comercial Império, para Moçambique. Integrou a 21ª Companhia de Comandos, que participou, entre outras operações, na Nó Górdio. Espoliou, matou e viu morrer. Morreu aos poucos.
Às 8h15 de 9 novembro de 1970, feriu-se em Montepuez, ao manipular um dispositivo explosivo que estava a preparar. “Desarticulação atípica da mão esquerda, desarticulação da mão direita”, é o que consta do seu processo médico. Foi posteriormente evacuado para o Hospital Militar Principal, em Lisboa. Passou ainda vários períodos no Hospital de Hamburgo, na Alemanha, para o qual foram encaminhados alguns estropiados de guerra. Foi depois “atirado” para o Depósito dos Indisponíveis na Graça, em Lisboa. E Depósito é mesmo a palavra correta para classificar esse espaço.
A Guerra Colonial foi um marco incontornável na vida do meu pai. Apenas pude construir um puzzle a partir dos fragmentos que ele ia partilhando sobre a sua vida antes, durante e no imediatamente a seguir à Guerra. Desde a sua morte, em janeiro de 2015, tenho dedicado parte do meu tempo a descobrir mais sobre a sua história, o seu percurso. Passei várias horas no Arquivo Geral do Exército, no Arquivo Histórico Militar, participei no almoço de ex-combatentes da 21ª Companhia de Comandos, continuo a conviver com os seus/meus companheiros da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA). Mas não foi preciso muito para perceber que, se não antes, a revolução dentro do meu pai emergiu na Guerra.
Parte do corpo do meu pai ficou em Moçambique. Consigo trouxe a certeza de que era preciso acabar com a Guerra. O meu pai fez o 25 de Abril com tantas e tantos outros, defendeu-o na rua de arma na mão. Continuou a defender a Revolução toda a sua vida. Em alguns momentos, também de arma na mão.
Eu e o meu pai nunca tivemos uma conversa tranquila, estruturada, sobre a sua participação na Guerra Colonial. Nunca me explicou que foi comando. A versão era outra. Acredito que nunca tenha feito as pazes consigo próprio por isso. Ou que, pelo menos, nunca tenha conseguido apaziguar-se. Por ter marchado para o matadouro. Por se ter tornado carne para canhão. Por ter matado, visto morrer. Pelos horrores que fez, os horrores que viu fazer. “Tu não imaginas o que eu fiz”, dizia-me.
Os momentos em que ele partilhava memórias soltas, confusas, conturbadas, eram pesados e sombrios. Não me lembro bem que idade tinha quando começaram estas “conversas”. Mas era mesmo bastante pequena. O álcool trazia ao de cima os estilhaços mais dolorosos. Os seus demónios. Costumávamos ficar os dois sozinhos, na escuridão ou na semi-escuridão, e ele falava-me sobre aquilo que não ousava partilhar com mais ninguém. Os cheiros, os sons, as imagens da Guerra e da morte. As perdas. Eu esforçava-me o mais que podia para pesar bem as minhas palavras. Sentia-o como uma granada sem espoleta, como aquela que lhe roubou a mão, pronta a explodir. E só queria tentar conter toda aquela raiva, aquela tristeza, aquela angústia. Com cerca de oito anos, os pesadelos com os horrores da Guerra e a morte fizeram com que eu começasse a urinar na cama.
A Guerra chegou até mim desta forma. Através de todo este turbilhão de memórias e sentimentos. Chegou até mim através da ausência da mão esquerda do meu pai, das dores incessantes que sentiu durante toda a sua vida no braço que foi possível salvar e na mão que não existia – a dor do membro fantasma. Chegou também através das manchas de vitiligo em parte do seu corpo, que mais tarde soube terem sido causadas pelo stress de guerra. Chegou através dos estilhaços que, literalmente, lhe foram saindo do corpo, furando-lhe a pele. Chegou através do sobressalto com barulhos estridentes, o estado de permanente vigilância. E também chegou até mim através de todos os seus companheiros.
O meu pai foi um dos fundadores e dirigentes da Associação dos Deficientes das Forças Armadas em Lisboa e em Viseu, tendo igualmente sido um dos construtores da Cooperativa dos Deficientes das Forças Armadas.
Cresci com o Carmo Vicente, o António Calvinho, o Marcelino, o Luís Godinho, o Arruda, o Correia… Muitas vezes ficavam comigo quando o meu pai se ausentava. Eu andava de colo em colo. Habituei-me a encontrar as suas próteses espalhadas pela casa e, inclusive, a brincar com elas. Os meus amigos não tinham pernas, não tinham braços, eram cegos, surdos,… Tinham perdido todos algo e ganho memórias às quais não é possível fugir. Alguns ainda viviam a Guerra. Os seus pensamentos nunca saíram de Angola, Guiné ou Moçambique.
O meu pai nunca foi um desgraçadinho, ainda que muitas vezes tenha sido tratado como tal pelo Estado e pela sociedade. Ainda que tenha sido confrontado com um puro assistencialismo misericordioso que nada mais fazia do que retirar a sua dignidade.
O meu pai era um furacão, uma força da natureza. Era um revolucionário. Foi alguém que pegou nos seus estilhaços e fez deles força, protesto, ação. E é muito graças a ele, Jorge Carneiro, o meu pai, uma das pessoas mais complexas, mais inteligentes e mais extraordinárias que conheci, e a todos os seus/meus companheiros, que sei, desde sempre, o que foi, de facto, o passado colonial português e os horrores de uma guerra injusta, imoral, maldita. Que sei quem foi Amílcar Cabral e os Movimentos de Libertação Nacional. Que sei quem era o verdadeiro inimigo.
Não só sou filha da Guerra como cresci com a Guerra. Com os horrores da Guerra. Cresci com a morte, o cheiro à guerra, o stress pós traumático. E trago-os ainda comigo. Filha de uma resistente antifascista, militante do PCP, que esteve presa, foi torturada, passou pela clandestinidade, trago também comigo o peso da repressão da ditadura. Da minha mãe, herdei o desconforto face a espaços fechados, a impossibilidade de trancar portas, o receio do barulho produzido pelos ferrolhos. Mas a maior herança dos meus pais é a certeza de que temos de resgatar a memória do que foi o fascismo, o colonialismo, a Guerra Colonial.
Os estilhaços da Guerra Colonial são incómodos. Querem-se guardados a sete chaves em qualquer arquivo oficial ou escondidos no recato familiar. Cabe também a nós pegar nesses estilhaços e fazer deles força.
A melhor forma de evocar o meu pai, a melhor forma de lidar com os meus estilhaços, é contribuir para que um passado tão recente, um passado de fascismo, ditadura, tortura, colonialismo, esclavagismo, não caia no esquecimento e seja branqueado. É combater uma das mais flagrantes heranças coloniais: o racismo estrutural, sistémico, que continua a grassar na nossa sociedade. É enfrentar a narrativa da extrema direita a nível académico, político, social, em todos os espaços da nossa vida. Esta é a urgência a que eu devo, a que devemos saber responder.
Artigo publicado originalmente na Edição #8 do infoTRAUMA, publicação do Observatório do Trauma do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Comments
É claro que da guerra que se
É claro que da guerra que se seguiu à guerra sabes nada.
Tens a tua guerra de estimação, a que te tocou a pele, e todas as outras são guerras de jornal, tropeços de ideologias e ideais, que tratas de formatar como melhor te acomodem nas tertúlias dos sempre justos que se vão à cama sem remorsos ou dúvidas.
Um relato comovente e conciso
Um relato comovente e conciso, eu sou filho de um pai que apoiava o antigo regime, nunca deixou de o apoiar, mas que transportava os seus demónios e os partilhou comigo. Eu quando o 25 de Abril se deu tinha dez anos, e desde muito cedo, abracei a revolução, contra as tendências do meu pai. Fui militante do PCP e tive de esconder isso ao meu pai, embora suspeite que ele desconfiava disso, morreu em 2015 no dia em que a geringonça foi eleita pelos portugueses.
Sem sombra de dúvida, este
Sem sombra de dúvida, este texto é uma das melhores e mais bonitas homenagens de uma filha à memória do pai.
E uma das mais eficazes respostas àquele ludibriante comentário que tantas vezes ouvimos "o Salazar livrou-nos da guerra"...
Parabéns, Mariana!
Achei muito assertivo o
Achei muito assertivo o artigo em que evoca a memória do seu Pai e respeito a "carga" que a guerra colonial teve (ainda tem) na sua vida Discordo, porém das suas conclusões quanto ao racismo e a sua abrangência que vislumbra na atual sociedade portuguesa. Eu nasci em África, vim para o Continente com três anos, órfão de Mãe aos 17 meses. Meu pai ficou em Angola até 1975. Branco foi explorado pelos seus patrões brancos, ele que não tinha a quarta classe e nem teve consciência disso. Mas foi. A guerra colonial foi uma fatalidade que se abateu sobre Portugal, exatamente, porque intrinsicamente não somos racistas, enquanto povo. Temos evidentes provas históricas da nossa miscigenação por esse mundo fora. Eu compreendo o seu drama e sobretudo o do seu Pai. Muita gente morreu, ficou estropiado e cometeu horrores inerentes ao conflito colonial. Em todas as guerras isso acontece e não há nenhuma guerra que seja justa e todas elas trazem dramas intimos, pessoais e familiares da mais diversa índole. O seu é mais um exemplo e não lhe retiro o dramatismo com que o vive. Mas o ser humano é generoso e não tire conclusões apressadas. Racistas há muitos no mundo inteiro, devem ser combatidos, mas não com a linguagem do ódio, nem com o sentimento de vingança. Eu sei que V. é capaz disso. Mesmo em memória do seu Pai. Eu sou casado com uma médica negra, e alguns dos meus melhores amigos são africanos. Cumprimentos
solidários
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