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Cabo Delgado: "É preciso parar a guerra"

Em entrevista ao Esquerda.net, o historiador Yussuf Adam diz que, “naturalmente, a situação em Cabo Delgado tem a ver com o imperialismo e com o capitalismo”. E alerta que, independentemente das discussões ideológicas, "se não pararmos a guerra, não teremos nenhum sucesso”. Por Mariana Carneiro.
O historiador Yussuf Adam. Imagem Euronews.

Em entrevista ao Esquerda.net, Yussuf Adam, que se assume como um militante da Frelimo, sem cartão, “desde outros tempos”, demarca-se da linha oficial definida e defende que as estratégias de desenvolvimento pós-colonial adotadas pelo partido foram, essencialmente, “formuladas a partir de uma base ideológica ou política, sem ter em conta a realidade socioeconómica de Moçambique”. E que não tiveram “em conta os interesses dos camponeses e operários que a Frelimo identificava como a base social da revolução”.

De acordo com o historiador, os projetos de investimento associados à extração de recursos naturais “foram feitos sem qualquer preocupação com a melhoria das condições de vida das pessoas”.

Yussuf Adam deixa um alerta: “É preciso encontrar mecanismos para que não haja mais guerra”.

Em entrevista ao Público, afirmavas que “a presença de grupos islâmicos zangados com o Estado em Cabo Delgado é antiga”. Referias ainda que, no tempo colonial, houve bastante repressão e que, desde 1964 e até ao 25 de Abril, muitos foram mantidos presos em Ibo e outras ilhas. E dizias que, depois da independência e até ao fim do período da Frelimo como partido único, a relação com as religiões manteve-se muito difícil, especialmente com o islamismo.

Bem, primeiro quero deixar claro que penso que o facto de terem arranjado uma conotação religiosa ou étnica para esta revolta, para esta guerra, como lhe queiras chamar, é um recurso a um artifício simplificador e auto-legitimador dos que estão no poder.

A maior parte das pessoas que integram a insurgência são locais. Há mwanis, macondes, angonis, etc, envolvidos na insurgência. E tens cristãos, católicos, muçulmanos, protestantes e mesmo animistas. Portanto, este é um problema que está muito para lá de uma questão religiosa. Centrar a discussão das causas dos ataques na religião ou nas diferenças étnicas é redutor. Temos os ovos todos para uma omelete de violência.

Ainda que existisse uma diferenciação social, em Cabo Delgado houve sempre uma ligação entre os povos do litoral e os povos do interior. As pessoas da costa iam para o interior vender o que produziam, essencialmente peixe e sal. E os do interior forneciam-lhes cereais: milho, mexoeira, mapira [sorgo]...

Em famílias extensas de Cabo Delgado, consegues encontrar várias misturas de etnias, muitas vezes por questões de negócio, de cores e classes.

E as misturas em Cabo Delgado não são só de sangue, são também de religiões. Há práticas que já se confundem, que se harmonizam. Não vale a pena procurarem purezas étnicas ou religiosas na província.

Por outro lado, é natural que existissem problemas religiosos, mas eles são muito antigos. Basta lembrar, por exemplo, que o Frei João dos Santos [frade português] veio para Inhambane em 1586, depois saiu na altura em que Portugal estava ocupado pelos espanhóis, foi até ao Sena, e, entretanto, subiu e chegou ao Ibo. Uma das malandrices que ele fez foi proibir que as mulheres cristãs e as mulheres muçulmanas se encontrassem. E uma das suas coroas de glória foi ter queimado a mesquita de Sofala. Noutro momento, proibiu uma flotilha de barcos todos engalanados que vinha da ilha do Matemo para celebrar a circuncisão do filho do notável do sítio. Não estou a dizer que foi sempre assim, mas existiu uma certa repressão ao longo dos tempos.

Quando tiveste, pela primeira vez, indícios de que existiam grupos islâmicos que se distanciavam da comunidade muçulmana local?

Os indícios da existência de grupos islâmicos que se distanciavam da comunidade muçulmana local não são novos. Para te dar um exemplo, em 1985, quando fui passar a lua de mel a Pemba, fui abordado por um grupo de dez homens vestidos à sheik. Eles pediram-me ajuda, porque os filhos tinham sido presos pela tropa, acusados de terrorismo. Um dos jovens ficou sem uma perna. Na altura, explicaram-me que existia um grupo que os estava a acusar de praticarem um islão que não era correto. Nenhum dos meus contactos em Pemba tinha informações sobre o ataque da tropa. Quando cheguei a Maputo, também não consegui qualquer informação. Mas havia ali já algo a ferver em 1985.

No pós-independência, a tensão em torno do direito à terra terá contribuído para o escalar dos conflitos?

Os processos de reassentamento ao longo dos anos, desde o período colonial, passando pela independência, até à atualidade, traduzem-se em contradições geradoras de revolta.

No pós-independência, aqueles que regressaram da luta armada na Tanzânia, e queriam regressar às suas “antigas moradas”, viram as suas terras já ocupadas por outras pessoas. A Frelimo disse-lhes que tinham de ir viver nos sítios demarcados. Um dia fui visitar a aldeia de Namenda, no meio da qual passava água, e eles disseram-me que estavam tramados, porque tinham ordens do partido para ir viver lá em cima. Tiveram de abandonar a zona onde estavam e ir para junto da estrada, para as famosas aldeias comunais.

Surgiram vários conflitos neste processo, inclusive religiosos. As aldeias eram chefiadas pelo seu presidente que, supostamente, não podia ter religião. O feiticeiro, o homem da igreja católica, o muçulmano, etc. só podiam construir as suas casas na última fila. No centro da aldeia ficava o presidente da aldeia, que era o representante do partido.

E havia a questão dos “fabricantes de leão”[1]. Eu segui alguns casos e eram, de facto, de partir o coração. Num dos casos que estudei, o senhor acusado de ser “fabricante de leão” explicou-me que, na origem do conflito, estava a sua terra. “Essa terra é minha. Sempre foi minha, e eu quero-a de volta. Tenho direito a ela”, dizia-me. Durante a luta armada, a Frelimo disse-lhe que era preciso fazer unidade, que ele devia deixar os outros usarem a terra e quando acabasse a guerra recuperava a sua propriedade. Mas a pirâmide social mudou com a guerra. Os grupos que estavam mais em baixo subiram, e os que estavam em cima desceram. Um dia pegaram neste senhor e levaram-no de aldeia em aldeia, chicotearam-no em público para toda a gente saber que ele era “fabricante de leão”. E surgiram tantas outras histórias de “fabricantes de leão”. Ao matar um “fabricante de leão”, a pessoa não está sujeita à área criminal. É uma questão religiosa e de feitiçaria. Não matou uma pessoa, matou um animal. E depois, quando vamos lá ver, era uma senhora ou um senhor. E o que é que ele tinha de bom? A terra. Uma terra preta, fértil.

Uma vez, o professor João Carlos Trindade estava em Palma no tribunal, e apresentaram-lhe um caso. Ele olhou e disse que a legislação era clara. Tratava-se de um homicídio, tinham de os acusar e julgar. Os funcionários explicaram que quem “caçou o leão” foram o notário da aldeia, o chefe da assembleia, o primo de um general… Este esquadrão da morte era constituído por gente poderosa.

E a evolução do quadro socioeconómico e político em Moçambique após a independência veio agudizar cada vez mais os problemas na província?

Por vezes, parece que não olhamos para o processo histórico de desagregação dos movimentos nacionalistas que assumiram o poder em países como a Guiné, Angola ou Moçambique. E essa desagregação fez-se de várias maneiras. Uma delas é a perda de legitimidade.

Se leres o meu livro “Escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca do leopardo: trajectória de Moçambique pós colonial (1975-1990)”, que está disponível na internet, tens lá, na página 389, a reprodução de uma história oral de um presidente de aldeia em Mueda.

O testemunho ilustra as contradições no seio das estratégias de desenvolvimento pós colonial, que geraram ressentimento e criaram um ponto de entrada para a Renamo. Devido às suas posições políticas, alguns indivíduos ou grupos de indivíduos beneficiaram mais da independência do que outros. Isto não é uma coisa nova. Existiram vencedores e vencidos.

Na minha opinião, depois da independência, houve toda uma série de complicações. Costumo dizer que movimentos de violência extrema começaram a existir muito cedo. A Frelimo também era um movimento de violência extrema. Entretanto, tivemos a Renamo, que tentou entrar pelo Sul, pela zona de Montepuez, mas também estava presente no Norte, ao contrário do que se diz. Um dia, estava no norte do Planalto a fazer uns estudos sobre água e vi as mulheres a regressarem à aldeia. Tinham percorrido 30 ou 40 km para ir buscar água numa zona onde estava a Renamo. Disseram que tinham bebido água com os guerrilheiros e convivido com eles.

Durante o período da guerra da Renamo existiu muita violência, também por parte do nosso exército. E eram coisas que eram escondidas. Lembro que, durante essa guerra, as zonas onde se produzia algodão eram defendidas por uma milícia privada da LOMACO, do Tiny Rowland, que incluía muitos mercenários gurkhas.

Entretanto, deram-se os acordos gerais de paz. À época, existiram exemplos claros de apoio da população de Cabo Delgado à Renamo. Como, por exemplo, quando Dhlakama chegou a Mocímboa da Praia e toda a gente foi recebê-lo ao aeroporto. Tal não implica que a Renamo tenha sabido tirar partido pleno do descontentamento gerado pelas políticas do governo.

Em Moçambique temos um problema: o partido Frelimo e o governo são quase a mesma coisa, confundem-se. É praticamente um partido-Estado. E as estratégias de desenvolvimento pós-colonial adotadas pela Frelimo foram, essencialmente, formuladas a partir de uma base ideológica ou política, sem ter em conta a realidade socioeconómica de Moçambique. E, também, sem ter em conta os interesses dos camponeses e operários que a Frelimo identificava como a base social da revolução.

Acresce que as políticas de Estado ignoraram a diversidade religiosa, étnica e cultural de Cabo Delgado e reprimiram, de facto, o islamismo.

Quando eu estava em Balama, com o professor Allen Isaacman, um grupo de velhos que tinha sido retirado da ilha de Matemo – que o exército português usou como campo de concentração – pediu-nos para lhes explicarmos por que estavam a ser maltratados. Respondemos: “Maltratados como?”. Explicaram-nos que eram muçulmanos, tinham lutado contra o colonialismo, foram presos e estiveram na ilha de Matemo e, a 26 de abril, os portugueses pegaram neles e colocaram-nos em Balama. E pegaram nos macondes e levaram-nos para Mapupulo, em Montepuez. Agora, estavam a ser acusados de serem reacionários, contra-revolucionários, quando tinham lutado e sido presos por lutarem pela independência.

Depois, se deres uma volta por Cabo Delgado, onde encontras mais aldeias com casas de teto de zinco e chão de cimento – um importante indicador de diferenciação social – é em Mueda. Onde estão concentrados aqueles que recebem do Estado uma prestação como antigos combatentes. O que não inclui exclusivamente combatentes. Encontramos gente com 14 anos a receber a pensão.

Tens referido uma ideia, que circula entre a população, no sentido de que atualmente existe uma limpeza étnica. Ou seja, na tua experiência de campo, verificaste que, entre os deslocados internos, há a ideia de que os ataques dos insurgentes estão a ser apoiados por elites moçambicanas para expulsar os habitantes locais das suas terras.

Os próprios colegas do Centro de Integridade Pública (CIP) foram a vários lugares e as populações disseram-lhes exatamente o que eu já tinha ouvido: “Nós estamos a sair das nossas terras forçados e estamos a ser escravizados”.

Falei com deslocados internos nas aldeias onde se refugiaram. Diziam-me que esta guerra servia para os mandarem para fora das suas terras sem lhes pagarem indemnizações. Que queriam voltar para casa, não queriam ficar naquelas escolas e nem ir para os locais para onde os queriam mandar. Pediam um papel que dissesse de que aldeia eram e que têm lá terra. Mas, como temos uma lei que diz que a terra é do Estado, de repente, eles ficam sem posse dessa terra.

Quando me falavam em genocídio, eu perguntava-lhes porque utilizavam essa palavra, já que não estavam a ser mortos. Uma senhora olhou para mim e perguntou-me se há pior morte do que estar vivo e não poder viver onde se quer. “Era melhor que nos dessem um tiro, porque aí não sofríamos tanto. As árvores onde eu ia fazer os meus ritos e as minhas orações estão lá. Os sítios onde enterrei as placentas quando os meus filhos nasceram ficaram ali. Os meus mortos, os meus ancestrais ficaram lá”, dizia-me.

Quem está a ser corrido são os designados genericamente como mwanis. Mas devíamos referir-nos a cada um deles pelo nome do estado teocrático de onde são originários: de Palma, Pangane…

Há uma canção de um jovem que diz o seguinte: “Eu sou de Pangane. Eu como peixe fresco. Eu vou ao mar todos os dias. O meu vizinho é o mar. O que é que eu vou fazer ali para onde me estão a mandar? Essas aldeias não têm nada a ver comigo”.

É um pouco como pegar num algarvio e mandá-lo para o Minho. A forma como estas pessoas são reassentadas destrói a cadeia de negócios e de sobrevivência.

Um dos grandes erros que se cometem frequentemente, porque alguns põem os seus interesses e os investimentos à frente do bem comum, é dividir Cabo Delgado entre costa e interior, quando, na verdade, tens de dividir a província em fatias horizontais, entre os rios. Essas são as fronteiras reais, é assim que a população se movimenta. A circulação norte-sul também se faz, mas é, sobretudo, de gente que sai do Planalto de Mueda e que vem até ao rio Messalo: para casar, para apanhar ouro, para semear suruma...

Os projetos de investimentos estrangeiros na região, associados à extração de recursos naturais, não vieram exacerbar as tensões sociais e políticas locais? Nomeadamente no que diz respeito aos projetos de gás e petróleo, não contribuíram para aumentar a perceção de injustiça na distribuição de rendimentos e na gestão das terras?

Quem são os donos dessas concessões? O petróleo não foi descoberto hoje. Existem mapas das diferentes descobertas de petróleo desde 1923. Em 1975/76, a Frelimo discutiu se devia entrar no negócio do petróleo. O Samora disse logo que não valia a pena porque não tínhamos unhas para tocar aquela viola. Não valia a pena.

Naturalmente, o maldito petróleo também está na origem da guerra com a Renamo. O dono da SONAREP, Manuel Bulhosa, que financiou a Renamo, era um grande magnata do petróleo aqui em Moçambique. O petróleo era um grande negócio. Um amigo meu dizia sempre “petrol is politics, politics is petrol”. E alguém disse-me que também “politics is money and petrol is money”. E é verdade.

A propriedade desses locais de exploração de petróleo é algo que nunca ficou muito claro. E a lei de terras foi feita para garantir ao Estado o monopólio sobre a terra e transformar os direitos dos outros em zero. Não existiram políticas de proteção e de desenvolver os recursos. 

Eu sou a favor de uma política de desenvolvimento que faça com que os recursos que temos cresçam cada vez mais e que a riqueza e o bem estar das pessoas cresçam cada vez mais. Não é para restringir as liberdades, é para melhorar e aumentar as liberdades.

O Estado não discutiu convenientemente com as comunidades ou não ouviu o que foi discutido. Basicamente, o que aconteceu com a terra é que, basicamente, ela foi retirada às pessoas. 

Camila De Sousa, socióloga e cineasta, fez um estudo para uma empresa de consultadoria, a Norconsult, que estava a trabalhar para a Anadarko. No decorrer do seu trabalho, a população disse-lhe que com a sua terra, faziam vinte vezes mais do que aquilo que a Anadarko lhes estava a oferecer para abandoná-la. Mas o Estado já tinha feito todas as negociações que tinha de fazer com as empresas.

Entrevistei um senhor, que era o rei lá do Olumbe, no primeiro seminário nacional de pessoas reassentadas, organizado pelo Tomás Vieira Mário e a sua ONG. Ele explicou-me que perguntou à menina que tinha ido lá falar com ele qual era o benefício, e que ela lhe respondeu “desenvolvimento”. “E eu disse-lhe: ó filha, desde 1975 ou antes que me falam de desenvolvimento”, contou-me ele. 

Estava toda a gente convencida que ia ficar rica de um dia para o outro e isso não aconteceu. Também há muitas queixas de que não há empregos para as pessoas de Cabo Delgado. Vem muita gente do sul, muitas empresas do Zimbabué disfarçadas de moçambicanas, muitas empresas da África do Sul…

Lembro-me de estar numa aldeia a ver esticar cabos elétricos. Os trabalhadores eram do Zimbabué, mas afirmavam ser de Moçambique. Devia haver um testa de ferro local que estava metido no negócio e conseguia as licenças. Os miúdos locais diziam-me que conseguiam fazer aquele trabalho e que só precisavam de uma oportunidade.

Existiam ainda ali grupos com dinheiro. Não te esqueças que a história empresarial da região também vem de 1964. Estes portugueses que se tornaram moçambicanos, ou que foram embora para Portugal e depois voltaram, têm dupla ou tripla nacionalidade e contas bancárias em vários lados também se metem nesses negócios. E aproveitaram-se deles.

Se houvesse vontade de alterar a pirâmide social, empregava-se o máximo de mão de obra local com um salário digno. Tem de haver uma visão que não seja utilitária das pessoas. E o que é que acontece? Toda a gente vê quem acumula. Isso leva à revolta. 

Os investimentos foram feitos sem qualquer preocupação com a melhoria das condições de vida das pessoas. Começaram a construir-se casas para os técnicos, os engenheiros quando o que se devia ter feito era garantir que as pessoas tivessem boa produção agrícola, não perdessem o acesso ao mar, etc.

O que é preciso mudar em Moçambique? 

Uma das coisas urgentes é rever o sistema nacional de educação. Dar mais oportunidades às nossas crianças. Ter escolas com as mínimas condições. E é preciso discutir estas questões com a comunidade. O Estado tem de pegar nos impostos e investir para melhorar as condições de vida da população. Investir em serviços de saúde, na formação e capacitação dos jovens, criar empregos...

Qual é o problema? O que se tem feito com o dinheiro. O dinheiro empregue no sistema de defesa da costa e na compra das armas foi mal gasto. Teoricamente, pagámos um milhão por aquilo que conseguíamos comprar por cem mil. 

É preciso acabar com as injustiças sociais, com a corrupção.

Os machababos utilizam as desigualdades sociais para recrutar. Alegam que querem distribuir os rendimentos de forma equitativa. E conseguem capitalizar o descontentamento e a revolta das pessoas. 

É preciso um Estado democrático que respeita a cidadania, e no qual a cidadania participa na discussão e no controlo. 

Falas muito em privilegiar o diálogo…

Quando um exército reprime a população, esta vai juntar-se aos outros para se vingar. Neste momento, estamos metidos numa guerra em que as pessoas não acreditam. E a Frelimo e o Governo moçambicano estão a perder legitimidade. 

Se tentas combater isto com repressão, vais precisar de meter mais repressão e mais repressão e não vais a sítio nenhum. O fundamental neste momento é que haja um diálogo permanente. É preciso negociar imediatamente com esta gente. É preciso tratar estas pessoas respeitando as regras internacionais dos direitos humanos. 

Não sou nenhum ingénuo, sei que há classes, grupos, interesses, negócios pequenos e grandes e há corrupção. Mas o que acontece é que as análises sobre Cabo Delgado são uma espécie de salada de fruta. Põe-se tudo dentro da mesma caldeirada. Para fazer a análise é preciso ter em conta os diferentes fatores e ouvir as opiniões das pessoas. Há pessoas que lutaram pela paz nos seus distritos e que acabaram por ser presos pela tropa e pela polícia acusados de serem machababos. 

Por outro lado, ainda hoje sabemos pouco sobre esta guerra. Não há nomes. Não sabemos quem morreu. Essa informação não surge. E as pessoas continuam com medo de falar, vivem num terror permanente. 

Depois há toda esta questão da politização excessiva, da ideologização. A nossa passagem pelo estalinismo, pelo marxismo-leninismo absoluto simples, como dizia o António Quadros, poeta e pintor, não deixou grandes conquistas. 

Os valores que legitimaram os movimentos de libertação eram valores de respeito pelo ser humano, pela humanidade e essas organizações foram-se deteriorando e tornaram-se nesse exemplo terrível da senhora de Angola, a Isabel dos Santos. 

É essencial, portanto, haver uma responsabilização tanto ao nível dos responsáveis pela corrupção, pelo desvio dos dinheiros públicos, como  também, já noutro patamar, pelos abusos cometidos pelas forças no terreno.

Estamos de acordo. O problema é sempre quem põe o guizo ao gato. 

E há que ter algum cuidado com quem é mandado para a frente de guerra. Mas é preciso treinar, é preciso punir, é, inclusivamente, preciso, antes de mandar alguém para a guerra, fazer teste psicológicos e ver que histórias de vida essas pessoas têm. A Frelimo fazia isso isso durante a guerra. 

A formação na área dos direitos humanos é importante. 

Isso é preciso a todos os níveis. Temos aqui um centro de formação - o Acipol, que é uma instituição extremamente preocupada com a transmissão desses valores.  

Criar momentos de discussão, de crítica e de autocrítica é fundamental. 

Como é que estás a ver todos estes anúncios que apontam para uma intervenção militar de força?

Honestamente, não vejo uma solução militar para este conflito, como não vejo uma solução militar para conflito nenhum. Com isto não estou a dizer que não tem de haver uma intervenção militar. Se o outro vem com uma bazuca, eu não posso responder com uma fisga. O problema da intervenção militar vai ser de que forma é que ela vai ser feita. A guerra cria guerra, a violência gera violência. 

Não sei quais vão ser os acordos. Há alguns grupos e alguns países de que não gosto pessoalmente. Não posso apoiar alguém que tenha chegado ao poder através de um massacre de milhares de pessoas. Não posso também apoiar grupos ou soldados que atuaram em Moçambique, torturaram a população e criaram muitos problemas. O tal batalhão coreano do exército zimbabuano no corredor da Beira atuava de uma forma extremamente pesada. 

É preciso parar a guerra. E a guerra cria mais guerra. Sem paz não há nada. Vives no terror, no medo. E já são tantos anos de guerra. É preciso encontrar mecanismos para que não haja mais guerra.

Naturalmente que a situação em Cabo Delgado tem a ver com o imperialismo e com o capitalismo. Podemos utilizar todas as discussões ideológicas que quisermos. Mas se não pararmos a guerra, se continuarmos a ter guerra, não teremos nenhum sucesso.

Mas concordas que falar sobre as questões ideológicas e de como o capitalismo e o neoliberalismo têm conduzido a situações como aquela que está a ser vivida em Cabo Delgado também é importante para que não voltemos a cometer os mesmos erros?

Estamos de acordo.

E é também importante identificar os interesses que alimentam estes conflitos, não só em Moçambique, mas no mundo interno.

Também estamos de acordo. E, provavelmente, temos agora um neo-imperialismo a desenvolver-se ou temos condições dentro dos países onde uma pequena elite juntou dinheiro e quer ser uma espécie de Arturo Ui, para não dizer o nome real do senhor, que era Hitler. Quando há um capital financeiro que quer surgir, regra geral, o fascismo vem associado a isso. Agora, para fazer esse combate, é necessário que a sociedade se consciencialize, e que se auto-consciencialize, e que se bata contra isso. Caso contrário, não há nada a fazer. Há momentos em que não tens muitas hipóteses. É como diz o meu amigo, é ires andando “com a cabeça entre as orelhas”. E é um pouco isso que se vai fazendo.

Mas penso que há uma conjuntura internacional que possa permitir que melhoremos rapidamente a situação. Não sei. Vamos ver.

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Footnotes

  1. ^ Mito que existia em Muidumbe. Saber mais em:     https://oficinadesociologia.blogspot.com/2006/04/os-lees-mgicos-de-muidumbe.html

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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