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Odemira: imigração, trabalho e saúde ou anormalidades da “normalidade”

Os actuais problemas humanos e sociais não teriam surgido, se desde o início do trabalho de cada um desses imigrantes lhes tivessem sido concretizadamente garantidas as dignas condições de trabalho que, em Portugal, a qualquer outro trabalhador é conferido.

Há mais de um ano que passamos por uma situação de saúde pública com consequências humanas, sociais e económicas cuja gravidade é dispensável especificar.

É pois natural que quase toda a gente anseie pelo “retorno à normalidade”.

Contudo, algo que a pandemia já veio e virá a mais revelar são situações da “normalidade” que, agora agudizadas, melhor mostram o que já de há anos nelas veio a haver de gravidade nas suas consequências humanas e sociais.

Um exemplo disso é, no Alentejo, a situação dos trabalhadores agrícolas sazonais, com realce para os que trabalham nas plantações e estufas de Odemira, em actividades de agricultura (e ramos afins) intensiva.

São trabalhadores imigrantes, oriundos de países asiáticos (Índia, Paquistão, Nepal) que, através de agências privadas de colocação ou de angariadores de mão de obra ilegais (é público que a Polícia Judiciária e o Ministério Público têm em curso processos crime relacionados com esta matéria), são, na sua maioria, depois contratados ou directamente pelas empresas agrícolas e de outras actividades afins ali exploradas ou, intermediariamente, por empresas de prestação de serviços ou por empresas de trabalho temporário (ETT), depois subcontratadas, para utilização do trabalho desses trabalhadores, pelas empresas agrícolas.

Auferindo salários baixos e instalados em alojamentos (cuja utilização e pagamento da renda é associada à relação de trabalho) sobrelotados e com falta de condições de salubridade, de privacidade, de dignidade, constituindo uma “violação de direitos humanos” (citando o Primeiro-Ministro e não só), acabaram por ser o epicentro de um surto de covid-19 na região que levou a medidas de prevenção e mitigação da pandemia decididas pelas autoridades de saúde e pelo Governo. Incluindo uma cerca sanitária em duas freguesias de Odemira e, mesmo, mais recentemente, à polémica requisição civil de instalações de um complexo turístico para isolar profilacticamente parte desses trabalhadores, infectados com covid-19.

Muito embora este assunto tenha outras vertentes que mereceram mais atenção mediática, o que interessa aqui acentuar diz mais especificamente respeito às condições de trabalho desses trabalhadores e a sua relação com a saúde, no contexto – também a sublinhar – de um modelo económico-agrícola e de (sub)emprego bem como de imigração associado que já vem de há aproximadamente uma década com intensificação e alargamento pelo menos nos últimos três a quatro anos.

E, contudo, pelo que ouvimos e lemos, aparece agora quase como “surpreendente”. Do Governoi, das autarquias locais, das autoridades locais e da comunicação social.

Mas o que é mais surpreendente é que, por estes problemas humanos e sociais decorrentes das condições de trabalho e de vida destes imigrantes possam, porventura, estar “surpreendidos” os empregadores directos desses trabalhadores (empresas subcontratadas, ETT ou de prestação de serviços) e os utilizadores finais do seu trabalho, as empresas agrícolas. Se bem que considerem ser este um problema que “urge resolver rapidamente para não prejudicar as colheitas” (citando, da televisão, um representante da Confederação dos Agricultores de Portugal - CAP).

Foquemos então a atenção nestas empresas, nas qualidades referidas.

Nessas qualidades, nunca terão pensado (ou sido ajudados a pensar, nomeadamente pelas respectivas associações ou confederações empresariais) que, quer uns, quer outros, no sentido de serem responsáveis por lhes garantir condições de trabalho, são, de facto e de direito, com responsabilidades solidárias, empregadores ou co-empregadores desses trabalhadores?

Sim, neste condicionalismo de relacões empresariais (subcontratação e utilização de trabalho temporário) e laborais, legalmente, “o dono de exploração agrícola, bem como os respectivos gerentes, administradores ou directores, são solidariamente responsáveis pelas violações legais relativas à segurança e saúde dos trabalhadores ao serviço de empresas prestadoras de serviços, cometidas durante o exercício da actividade nas suas instalações”ii, devendo também os trabalhadores temporários “beneficiarem do mesmo nível de protecção da segurança e saúde do trabalho que os restantes trabalhadores do utilizador”iii.

Ou seja, são e sempre foram directa ou solidariamente responsáveis por, a esses trabalhadores, "garantir condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho"iv.

O que agora, com esta pandemia, implicaria, no mínimo, garantirem-lhes (no trabalho propriamente dito e nas associadas condições de alojamento) a prevenção da exposição a um agente biológico - vírus SARS – que, agora pandémico, é legalmente factor de risco profissionalv).

Ou será que, sim senhor, pensaram, mas deixaram de pensar porque, quando da sub(contratação) comercial entre essas empresas utilizadoras e as intermediárias (ETT e de prestação de serviços) pensar (e sobretudo agir) nisto, nas responsabilidades em garantir condições de trabalho, de saúde e de dignidade, desses trabalhadores, era na negociação empresarial do contrato de realização dos trabalhos agrícolas, uma … atrapalhação?

Um “problema de imigração”, diz-se. Pois, se envolve imigrantes, como é que não haveria de ser “um problema de emigração”?

Mas “só” de imigração? Essencialmente de imigração?

Poderá haver, como pelos vistos há, quem defenda emergir este problema de “incúria e facilitismo” (Público, 10/05/2021vi) associados ao modelo político-económico agrícola, ambiental e de desenvolvimento regional adoptado naquela região. Mas, agora, mais específica e essencialmente, é, antes de mais, um problema de trabalho. Mais concretamente, das condições (ou da falta delas) em que o trabalho é realizado.

Mormente estando em causa trabalhadores extremamente fragilizados (porque imigrantes, com dificuldades de comunicação, com vínculos laborais precários, sem enquadramento e muito menos representação sindical, sem informação) nas relações de trabalho e, portanto, sem condições para exercitarem, sequer reivindicarem, os seus direitos ou até só denunciarem a violação destes às autoridades competentes e sustentarem com informação segura a acção destas no respectivo controle e tratamento, se necessário coercivo, das situações violadoras dos seus direitos e por isso, em princípio, da Lei.

E assim, apesar de poderem haver, como há, outras responsabilidades a atribuir e a assumir, são nesta situação primeiros (em cronologia e em gravidade) responsáveis (até também porque, é de presumir, primeiros beneficiados economicamente pela exploração daquelas actividades agrícolas), principalmente as empresas proprietárias utilizadoras finais do trabalho desses imigrantes e também as empresas intermediárias, ETT ou prestadoras de serviços, subcontratadas por aquelas.

Os actuais problemas humanos e sociais decorrentes das condições de trabalho e associadamente de vida destes imigrantes, agora patentes, não teriam surgido, ou pelo menos não se teriam agravado, se desde o início do trabalho de cada um desses imigrantes, relacionado com que empregador e utilizador do seu trabalho fosse, lhes tivessem sido concretizadamente garantidas as dignas condições de trabalho que, em Portugal, a qualquer outro trabalhador é conferido o direito e de que, em princípio, é satisfeita a garantia.

E no entanto, no domínio público, são estas responsabilidades associadas às (más) condições de trabalho (logo, de vida) destes trabalhadores e a quem elas são principalmente atribuíveis, o que menos enfatizado é.

Como se tal fosse já banal. A “banalidade do mal”.

Depois, sendo esta situação essencialmente um problema de trabalho, é, como aliás para o bem ou para o mal (neste caso para o mal) todas as situações de trabalho o são, um problema de saúde. De saúde individual e, como agora é mais evidente, de saúde pública.

Porém, esta íntima relação entre trabalho e saúde, se bem que agora tenha mais relevo pelo agravamento das já degradadas condições de saúde do e no trabalho destes trabalhadores decorrente da pandemia, tem sido, em geral (não apenas com imigrantes e na agricultura) e há décadas, “um ângulo morto da saúde pública” (Público, 02/08/2010vii).

E é também isto que nos faz voltar ao início deste artigo.

Ou seja, a que, no que respeita ao “retorno à normalidade”, muito há que reflectir (e sobretudo agir) o que, ainda que só mais visível agora porque agudizado na sua gravidade pela pandemia, são anormalidades de uma “normalidade” que há muito carecem de … normalização.

Notas:

i Apesar de em 18/10/2019 ter sido aprovada em Conselho de Ministros a Resolução Nº 179/2019 que, sob uma perspectiva de agricultura, desenvolvimento regional e migrações, regulamentou, inclusive, as condições de alojamento (amovíveis) desses trabalhadores migrantes.

ii Nº 5 do Artº 16º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro

iii Artº 186º do Código do Trabalho

iv Artº 281º do Código do Trabalho e Artigo 15º da Lei 102/2009 de 10/9.

v O coronavírus (vírus SARS) é um factor de risco profissional, como constante da respectiva lista a ter em conta pelos empregadores nas prescrições mínimas de protecção dos trabalhadores contra os riscos de exposição a agentes biológicos, de acordo com directivas europeias transpostas para o Direito português em 1997 e, integrando já o coronavírus SARS-CoV2, com actualização em 2020 (Dec. Lei 102-A/2020, de 9/12).

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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