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Não desistiremos das crianças vítimas de Violência Doméstica

Perdeu-se uma oportunidade para se cumprir o superior interesse da criança e para lhes garantir a proteção devida. Perdeu-se também mais uma oportunidade para se cumprir a Convenção de Istambul.

Foi hoje rejeitado, com os votos contra do PS, do PCP e do CDS-PP, o projeto de lei do Bloco de Esquerda que garantia a proteção devida às crianças testemunhas ou inseridas em contextos de Violência Doméstica, reconhecendo-lhes o necessário apoio e direito a proteção.

Está cientificamente comprovada e consensualizada a noção de que a exposição a episódios de violência, especialmente de forma reiterada, acarreta consequências nefastas para a saúde psicológica e emocional das crianças e tem um impacto negativo importante no seu desenvolvimento, comprometendo seriamente a sua capacidade de integração social e de sucesso escolar.

Conscientes disso mesmo, 25 ONG’s assinaram uma carta aberta em defesa desta proposta. Também a UNICEF, o Instituto de Apoio à Criança, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a Ordem dos Advogados e os vários especialistas ouvidos em audição são unânimes na defesa desta proposta como fundamental para a proteção das crianças.

Tudo isto, como se não bastasse a recomendação feita ao Estado Português e expressa no relatório do grupo de peritos independentes (GREVIO) sobre a implementação da Convenção de Istambul em Portugal. A recomendação nº 219 insta as autoridades portuguesas a “tomarem medidas, incluindo alterações legislativas, por forma a garantir a disponibilidade e a eficaz aplicação das ordens de restrição e/ou de proteção relativas a todas as formas de violência” e ainda que “deve ser possível a inclusão das crianças na mesma ordem de proteção das suas mães, sejam as crianças vítimas diretas ou indiretas, já que elas mesmas experienciam a violência na própria pele ou a testemunham”.

Muito se tem dito e escrito a este propósito nos últimos dias. Sobretudo para desinformar, confundir e desvalorizar. Vamos por partes.

Já é possível considerar as crianças enquanto vítimas de crimes diversos, sejam contra a sua integridade física, a sua liberdade e autodeterminação sexual ou outros?

Sim. Mas não é obrigatório nem automático. Na esmagadora maioria das situações as crianças só são consideradas vítimas quando são “vítimas diretas” do crime. O que a proposta do Bloco trazia de novo era a garantia de que as crianças fossem sempre consideradas vítimas, mesmo quando não fossem o alvo direto da violência doméstica, mas a testemunhassem ou com ela convivessem.

Esta é a recomendação plasmada no relatório1 GREVIO, esse é o compromisso assumido por Portugal quando ratificou a Convenção de Istambul, esse é o consenso das várias organizações e estruturas de defesa e proteção das crianças e mulheres, de especialistas e peritos vários, de entidades judiciais.

Esta é, também, a posição da Procuradora-Geral da República ao contrário do que tem sido difundido, escolhendo-se publicar segmentos parciais dos pareceres para justificar o injustificável. O que faltou dizer e que aqui se transcreve com os segmentos em falta do dito parecer, é que a PGR não se opõe à definição expressa da criança enquanto vítima na Lei da Violência Doméstica. Refere, aliás, que "estamos claramente de acordo quanto ao reconhecimento legal expresso das crianças enquanto vítimas do crime de violência doméstica quando vivenciam esse contexto no seio da família e quando sejam testemunhas presenciais dessa realidade". Acrescenta, ainda, que "nos termos em que o crime de Violência Doméstica está atualmente construído, o conteúdo da alínea a), do n° 2 (da Lei 112/2009 - Lei da Violência Doméstica) é, claramente, um sinal contrário ao reconhecimento e consagração da criança como vítima autónoma, diferenciada, titular de direitos pessoais próprios e merecedores de idêntica tutela jurídico-penal."

Não só a PGR se mostrou favorável a esta consagração legal, tanto no parecer emitido como em audição parlamentar, como considerou ainda que a proposta carecia de completude sugerindo que se fosse mais longe e se promovessem igualmente alterações no Código Penal.

O argumento de que não servia de nada avançar desde já com esta alteração legislativa também não colhe. Nada impede que, uma vez garantido o estatuto de vítima para as crianças que testemunhem ou vivenciem contextos de violência doméstica, se proceda a todos os melhoramentos e aprofundamentos que se considerem adequados e necessários, como de resto acontece em tantos processos legislativos.

Não se compreende a rejeição de uma medida que toda a gente, com exceção do PS, PCP e CDS, reconhece como necessária, urgente e fundamental. A não ser que se considere que as crianças inseridas em contextos de violência doméstica só são vítimas se forem diretamente visadas por essa violência. Ou que apenas a violência física conta. Se assim for, que se assuma o argumentário.

Perdeu-se uma oportunidade para se cumprir o superior interesse da criança e para lhes garantir a proteção devida. Perdeu-se também mais uma oportunidade para se cumprir a Convenção de Istambul da qual Portugal é signatário e com a qual se comprometeu.

Como sempre, o Bloco de Esquerda não desistirá. Cá estaremos para insistir até que as crianças sejam de facto sujeitos titulares de direitos próprios e consideradas dignas da proteção que é garantida às vítimas “diretas” do crime de violência doméstica.


Nota

1 Relatório publicado pelo Conselho da Europa, consulta aqui.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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