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Espanha: propor um pacto com as direitas é “um grande erro de cálculo”

Manuel Monereo, em artigo publicado em Cuarto Poder, critica a proposta de Pedro Sánchez e afirma que esperar por alternativas solidárias e fundos sem condicionalidade da União Europeia “é não entender como a UE funciona”.
Pablo Sánchez, primeiro-ministro de Espanha e líder do PSOE, reuniu por videoconferência com Pablo Casado, líder do PP
Pablo Sánchez, primeiro-ministro de Espanha e líder do PSOE, reuniu por videoconferência com Pablo Casado, líder do PP

Diz-se que a história não se repete, depois afirma-se que rima e, imediatamente a seguir, propõem-se novos pactos de Moncloa1. Há algo mais do que incoerência: má análise do que foi a Transição, do que significaram os Pactos de Moncloa e as suas consequências para a democracia espanhola. Xavi Domènech2 definiu muito bem e eu remeto para ele. Aqui e agora, os pactos programáticos com as direitas económicas e políticas serão pura propaganda ou algo mais grave, preparar o país, as classes trabalhadoras, para novos planos de ajustamento, cortes salariais e laborais e, o que é pior, neutralizar o conflito social.

Há quatro planos que se misturam e que há que tentar desemaranhar.

O primeiro é a gestão do governo. Para além de faltas de coordenação, improvisações contínuas e várias deficiências (como em quase todos os governos), há um dado essencial que se esquece: o programa, os fundamentos políticos que deram vida a esse governo rebentaram. Falou-se, com razão, de correlação de fraquezas. Não há programa, não há estratégia e cada medida, cada proposta deve ser negociada duramente. Propor nestas condições uma mesa para a reconstrução do país, nem mais nem menos, é um grande erro de cálculo.

Outro plano é o mais evidente e o que é menos comentado, a construção de um amplo setor público voluntário de solidariedade, de apoio mútuo e de afetos

Outro plano é o mais evidente e o que é menos comentado, a construção de um amplo setor público voluntário de solidariedade, de apoio mútuo e de afetos. Trata-se de um bloco transversal, que não apoia o governo necessariamente, mas defende, por exemplo, o público, os valores democráticos, a saúde não mercantilizada e, em geral, uma economia política ao serviço das necessidades básicas das pessoas. Este bloco deve ser fortalecido e desenvolvido por um governo que se intitula de esquerda. A chave, insisto repetidamente, é o valor transformador do conflito social como motor da mudança de modelo económico, social e político.

Um terceiro plano tem a ver com a direita extrema e a extrema direita. Vale a pena repetir: o Vox não é o populismo de direita, é a direita tradicional espanhola pura e dura; isto é, monárquica, autoritária, neoliberal e dependente, até nos grotescos extremos da política imperial dos EUA. Não é antagónico com o PP, bem pelo contrário, complementam-se e praticam coerentemente a unidade de ação. Qual é o seu objetivo? Ganhar a narrativa para impedir que o controle da pandemia possa beneficiar o governo social-comunista, como eles lhe chamam. Em que consiste essa narrativa? Em criar um quadro cognitivo que culpabilize o governo, tanto pelo vírus como pela morte do vírus. Converter o sofrimento de milhares de pessoas em instrumento político para os levar ao governo. Eles estão dispostos a isto e a muito mais.

um quarto plano que não pode ser esquecido, a trama, os poderes fáticos, os grupos económico-financeiros dominantes e os seus tentáculos com os grandes monopólios internacionais. Há que sublinhar, depois se explicitará melhor, que há uma sintonia perfeita entre estes poderes e as instituições da União Europeia. Esta sintonia é de classe e de projeto, não é circunstancial; eles estão interessados na perpetuação do neoliberalismo, na disciplina externa e na camisa de força que o sistema euro significa, que é muito mais do que uma moeda estrangeira. A trama, os poderes reais, têm um objetivo claro, explícito: "suavizar" Pedro Sánchez, convertê-lo num instrumento passivo do seu poder; para isso, precisam de pôr fim à presença da Unidas Podemos (UP) no governo. É preciso não confundir, a peça a caçar não é Pablo Iglesias, é Pedro Sánchez. Esta estratégia – conhecemo-la muito bem desde sempre – é converter o estado de necessidade (económica) num estado de exceção (económica, social e política).

É preciso não confundir, a peça a caçar não é Pablo Iglesias, é Pedro Sánchez

Como era de esperar, o governo está a converter-se num centro onde se juntam todos os conflitos básicos. Os poderes sabem disso, a direita económica e política também. Um setor do governo está a emitir sinais às instituições europeias e a conhecidos órgãos de comunicação, transferindo o conflito e quem são os seus protagonistas. Inevitavelmente, há que falar de estratégia e ter algumas ideias claras. Na crise estão a delinear-se duas fases: a do controle da pandemia e a da saída socioeconómica da mesma. Não se podem separar. A ideia de resolver a crise do vírus e depois o programa de reconstrução é um grande erro.

Entender bem a fase. A crise será longa, complexa e com enormes custos produtivos e sociais, por três razões, pelo menos: 1) porque o coronavírus acelerou catastroficamente uma crise latente no sistema económico mundial. Todos esperávamos um "cisne negro" e apareceu um tubarão. Esta é a novidade que também indica as ruturas da sociedade no seu metabolismo com a natureza; 2) antes, durante e após a crise, está a ocorrer uma grande batalha geopolítica de grandes dimensões que opõe dois blocos, mais ou menos heterogéneos, em torno de uma potência em declínio (EUA) e de uma potência emergente (China). Esta tirou o capitalismo da sua anterior crise e a partida que se está a jogar definirá um novo território mais conflitual, mais beligerante e mais polarizado; 3) os grandes problemas irão acentuar-se, os conflitos políticos serão generalizados assim como as desigualdades, a pobreza e a luta pelos recursos. A guerra não estará longe.

Clarificar o papel da UE. É incrível que agora, a partir do governo, se esteja a falar da UE como um problema de relações internacionais. O Estado espanhol não é um país soberano. A política económica não depende do seu parlamento. Planear a reconstrução económica e social do país é enganar e enganar-se a si próprio. Para dizer sem ambiguidade: as políticas dominantes (consagradas nos tratados) são incompatíveis com políticas de reindustrialização, de desenvolvimento do estado social e de defesa do poder contratual das classes trabalhadoras. O problema do sistema euro é que o emissor da moeda é diferente daquele que a utiliza. Para a Espanha (e para qualquer outro país, exceto a Alemanha), o euro é uma moeda estrangeira que depende do "príncipe moderno", ou seja, do Banco Central Europeu. Convém repetir que as instituições da UE e os poderes económicos do Sul estão claramente interessados em perpetuar a disciplina e a intervenção externa pressuposta pela economia do euro.

Não monetizar a dívida nem emitir títulos articulados significa que cada país, singularmente considerado, acabará preso na dívida soberana. Desta vez, o sinal é diferente. Uma crise externa que provoca um gravíssimo problema económico-produtivo e social, uma crise financeira emergente e um tremendo problema de dívida pública. O que veio da UE é insuficiente para as dimensões da crise, aumenta a dívida e coloca-nos num cenário futuro extremamente difícil. Quando a pandemia for controlada no fundamental, cada país terá que se basear nos seus próprios meios, mas sem capacidade de emitir moeda; isto é, atado às diretrizes do Eurogrupo e do BCE e, em último termo, à ditadura dos mercados.

Sobre a gestão do governo. Continuar à espera de que venham da União Europeia alternativas solidárias, fundos não sujeitos a condicionalidade estrita, é não entender como a UE funciona. Diz-se que, com esta dinâmica, pode-se pôr em perigo o euro e a própria UE. É verdade. Onde está a linha de rutura? Os governos negociarem individualmente com as instituições da UE e com a Alemanha ou pressionar com a mobilização das populações contra políticas que colocam em risco direitos e liberdades? Não aprendemos nada com a Grécia? A trama, os poderes económicos em aliança com a tecnocracia europeia, o que procura é encerrar-nos num cenário de extrema necessidade, onde, no final, é preciso escolher entre sair da UE ou permanecer nela aceitando duríssimos planos de austeridade. Precisamente por isto, as decisões que não se tomarem agora, ou que sejam tomadas numa má direção, pesarão de forma determinante nos supostos planos de reconstrução produtiva e social. Alguém acredita, neste momento, nas declarações de Felipe González alertando para o perigo da Unidas Podemos (UP)? Alguém acredita que, como diz o consultor de Slim, a UP está a tentar mudar o regime? Tudo isto faz parte da ofensiva dos poderes, da trama para impedir que se tomem medidas que possam dificultar muito os planos futuros de ajustamento.

A decisão estratégica fundamental deste governo seria definir, com precisão, um programa positivo de reconstrução do país, negociá-lo com os atores sociais e promover a mobilização da cidadania. O que as instituições da União Europeia mais temem são o debate público, a deliberação democrática, a luz e a taquigrafia. Aqui pode ver-se a clareza da loucura, quando não é uma mentira, tão europeia que é a única coisa que pode "salvar" os seus grupos de poder económico, as suas principais classes. Se for afirmado, como dizem eles, que a atual UE está a ir na direção contrária à que deveria, que falta uma Europa "mais social" e uma Europa "mais solidária", é de perguntar: não chegou já o tempo para enfrentar as instituições que promovem políticas que geram enormes sofrimentos sociais e psicológicos, perda de direitos e liberdades, cortes salariais e a progressiva liquidação do que resta do estado social? Não chegou o momento de enfrentar uma UE que divide a Europa, que é uma máquina de produzir nacionalismo e direitas extremas e que – o pior - cria as condições para que, pouco a pouco, vão desaparecendo as forças democráticas e populares alternativas? A única forma de enfrentar este dilema é mobilizar a opinião pública, rearmar programaticamente os atores sociais e estabelecer as grandes prioridades de um país que vai sofrer uma crise de graves e enormes dimensões. Se as políticas de que o país necessita não são possíveis nesta União Europeia, é necessário lançá-las. Só jogando forte será possível mudar as suas diretrizes dominantes. Ou isto ou aceitar as políticas de superausteridade que vão vir.

A decisão estratégica fundamental deste governo seria definir um programa positivo de reconstrução do país, negociá-lo com os atores sociais e promover a mobilização da cidadania

Façamos um exercício de imaginação. Suponhamos um retrocesso considerável do PIB (de acordo com o número dado por diferentes organizações), acrescente-se a destruição de milhares de pequenas e médias empresas, o crescimento exponencial do desemprego, da dívida pública e do défice fiscal. Os media falam de falência do país e da necessidade de afastar a UP do governo e os chamados mercados especulam e fazem subir o prémio de risco. Ficção política? Não creio. A História repete-se, sim, pelo seu pior lado, parafraseando o mestre Hegel.

Artigo de Manuel Monereo, com o título “La estrategia de la trama: del estado de necesidad al estado de excepción”, publicado em Cuarto Poder a 21 de abril de 2020. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net


Notas:

1 Pactos de Moncloa – acordos estabelecidos na chamada transição espanhola, em outubro de 1977, e assinados no Palácio da Moncloa (ver wikipedia). Pedro Sánchez propôs a todos os partidos, em 4 de abril de 2020, “novos pactos de Moncloa” (ver https://www.lavanguardia.com/politica/20200404/48299713720/sanchez-nuevos-pactos-moncloa-1977-crisis-coronavirus.html)

2 Xavier Domènech – historiador e professor na Universidade Autónoma de Barcelona (ver wikipedia). Ler Pactos de la Moncloa 'reloaded'?

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