You are here

Brasil a caminho de um estado policial?

As revelações do The Intercept que comprovam as atividades ilegais de Sérgio Moro não mudam com a prisão dos hackers que supostamente entregaram o material ao site. Mas Moro quer ser ao mesmo tempo ministro da Justiça, chefe da operação, acusador, investigador e… vítima. Por Luis Leiria.
Sergio Moro e Jair Bolsonaro: ataques à liberdade de imprensa. Foto de Carolina Antunes/PR
Sergio Moro e Jair Bolsonaro: ataques à liberdade de imprensa. Foto de Carolina Antunes/PR

Quando o site informativo The Intercept Brasil começou a publicar reportagens com revelações bombásticas sobre a atuação dos principais protagonistas da operação Lava Jato, o ex-juiz Sergio Moro colocou-se numa posição impossível. Por um lado, em nenhum momento refutou cabalmente os diálogos nos quais ele participava, alegando apenas que não podia comprovar a sua autenticidade por não ter acesso aos arquivos originais, não podendo afirmar se tinha ou não havido manipulação ou edição nos chats do aplicativo Telegram. Mas, por outro lado, afirmava que se fossem verídicas, nada do que lhe era atribuído era ilegal ou censurável.

Desta forma, tentava cobrir a sua retaguarda de todas as formas possíveis: por um lado, não reconhecia a autenticidade dos diálogos, mas não afirmava que eles eram mentirosos – já que mais tarde poderá ter de se confrontar com a sua irrefutável autenticidade. Por outro lado, já adiantava a sua defesa caso os diálogos venham a ser estabelecidos como verdadeiros.

Moro na corda bamba

A situação do ex-juiz e atual ministro da Justiça tornou-se realmente complicada porque o que está em causa é nada menos que a comprovação de que na operação Lava Jato o então juiz Moro nunca manteve a independência devida, segundo a Constituição brasileira, em relação à acusação e à defesa, tendo funcionado, pelo contrário, como o chefe da acusação, ao qual se subordinavam os procuradores que investigavam as suspeitas de corrupção, dos quais o mais importante dá pelo nome de Deltan Dallagnol.

O caso ganha ainda mais importância quando se sabe que Moro teve participação decisiva em todo o processo que levou à prisão, condenação e impedimento de concorrer às eleições do ex-presidente Lula. Todas as sondagens mostravam que Lula derrotaria Jair Bolsonaro tanto na primeira quanto na segunda volta das eleições. Mas Moro orientou os procuradores para que conseguissem a prisão de Lula, tirando-o da campanha eleitoral. E, depois disso, condenou-o em tempo recorde. Sabemos agora que teve participação também nas manobras e pressões que impediram até que o ex-presidente, da cadeia, desse uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Para fechar com chave de ouro, garantida a derrota do PT e a vitória de Bolsonaro, aceitou candidamente o convite para ser o seu ministro da Justiça.

Sergio Moro tem muito mais em comum com Bolsonaro do que à primeira vista se poderia pensar. Tal como o presidente, considera-se um predestinado, um herói ungido pelo povo para cumprir a missão de acabar com a corrupção no Brasil. E, tal como Bolsonaro, não liga muito para “detalhes” como direitos dos acusados, devido processo legal, separação de poderes, independência dos magistrados – tudo coisas que, como diria Bolsonaro, só complicam a vida de quem quer “humanos direitos” e não “direitos humanos”.

Mas mesmo os predestinados têm as suas fraquezas, e Sergio Moro acusou o toque das revelações do The Intercept. Subitamente, tirou cinco dias de férias num momento em que muitos dos seus seguidores e eleitores se espantavam com a parcialidade da atuação do então juiz demonstrada nas reportagens. Teve cinco dias de licença sem vencimento (ainda não tinha direito a férias), entre 15 e 19 de junho, “para tratar de assuntos pessoais”.

O contra-ataque de Moro

Voltou decidido a desfechar o contra-ataque. Tal como tantos outros fizeram antes, procurou desviar a discussão sobre o conteúdo dos chats para a forma como estes tinham sido obtidos, que ele afirmava ser criminosa. Passou assim a considerar a imprensa que divulgava as trocas de mensagens como “cúmplices do crime”. E quando a Polícia Federal prendeu quatro suspeitos de terem sido os hackers que conseguiram obter todo o material e que o teriam passado anonimamente para o The Intercept, o ministro achou que tinha chegado a hora do golpe de misericórdia sobre o adversário. Publicou uma portaria – com o número 666! – que autoriza a deportação sumária de estrangeiros considerados “perigosos para a segurança do Brasil”, numa clara ameaça a Glenn Greenwald, editor do Intercept, cidadão norte-americano que vive no Brasil há 14 anos. Ao mesmo tempo, um deputado federal do PSL apresentou à Procuradoria-Geral da República um pedido de prisão temporária de Greenwald. E, no domingo, o próprio presidente da República fez uma ameaça direta, insinuando que o jornalista pode ser preso.

Além disso, Moro telefonou para diversos juízes do Supremo Tribunal avisando-os que a polícia tinha apreendido material onde eles apareciam, mas que ficassem descansados porque as conversas seriam destruídas. Com isso, cometeu um cortejo de ilegalidades. Primeira: demonstrou que estava por dentro das investigações da Polícia Federal que, por decorrerem sob sigilo, ele não poderia conhecer. Segunda: em vez de comunicar institucionalmente com os ministros do Supremo, optou pelo contacto pessoal. Terceira: anunciou que as mensagens seriam destruídas, quando só o Judiciário pode tomar essa decisão.

 

Uma prisão ainda com muito por explicar

A prisão dos quatro hackers é um episódio ainda extremamente nebuloso. A Polícia Federal ainda não admitiu que o material obtido por estes suspeitos é o mesmo que está na posse do The Intercept, apesar de Moro já se ter adiantado e afirmado que sim. Apenas um dos presos, Walter Delgatti Neto, admitiu ter sido ele a obter esse material e entregue anonimamente a Glenn Greenwald. Mas o método que afirma ter usado é totalmente incompatível com o número de autoridades cujos telemóveis a Polícia diz que ele invadiu: cerca de mil.

Um especialista ouvido pelo El País é taxativo: “Eles ligaram para mais de 1.000 caixas postais, uma por uma, em poucos meses? É muito trabalho. Não dá para hackear 1.000 telefones, mesmo se estivermos falando de quatro hackers de ponta. É um número altíssimo.” Ele considerou também ultrapassado o método de invasão supostamente utilizado, afirmando que este não seria usado por um hacker com capacidade de chegar aos principais nomes do cenário político nacional.

“Aos poucos foi se construindo uma narrativa perfeita para quem deseja descredibilizar a Vaza Jato: um bando de estelionatários do interior de São Paulo hackearam autoridades, movimentaram uma grana preta sem justificativa e repassaram o fruto do crime para o Intercept. Pronto! Um prato cheio para quem, como o ministro Sergio Moro, tenta nos colocar o rótulo de ‘site aliado a hackers criminosos’”, escreveu o The Intercept, que acusa o ministro Sérgio Moro de ter “atuado como ministro da Justiça, chefe da operação, acusador, investigador e, vejam só, vítima”. Para o site informativo, Sergio Moro está a dar forma a um Estado Policial no Brasil.

O The Intercept escreveu em editorial que a prisão dos quatro hackers não terá qualquer efeito sobre o jornalismo que está a produzir a partir do material recebido: “O interesse público na divulgação desse material era óbvio desde o princípio: esses documentos revelam más condutas sérias e sistemáticas – e, o que nos parece claro, flagrantes ilegalidades – por parte do então juiz, agora ministro da Justiça, Sergio Moro, bem como do coordenador da operação Lava Jato Deltan Dallagnol e de outros procuradores da força-tarefa.”

As últimas reportagens concentraram-se nas atividades lucrativas do procurador Deltan Dallagnol, palestras que, segundo o próprio afirma, lhe renderam 400 mil reais limpos no ano de 2018. Dallagnol fez uma palestra a uma empresa que consta de uma delação da Lava Jato, e participou de de um encontro secreto com presidentes e altos executivos de bancos para discutir a Lava Jato e as eleições.

Termos relacionados Governo Bolsonaro, Internacional
Comentários (2)