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Leituras: O Nervo Óptico

O romance da escritora argentina María Gainza associa quadros da sua vida a quadros de pintores expostos em museus no seu país e noutros lados do mundo. Por Almerinda Bento.

Tive com este livro uma experiência que nunca tivera antes. Li-o e quando cheguei ao fim decidi voltar a lê-lo, desta vez com mais vagar, pesquisando os pintores e os quadros que são nomeados ao longo do livro, como se eu também acompanhasse a narradora/autora nas suas deambulações pelos museus, galerias e salas onde ela encontra os seus quadros favoritos ou aqueles que de alguma forma a levam “a sentir aquela agitação que alguns descrevem como borboletas no estômago…”

Também a capa me atraiu e me criou repulsa. A imagem é sugestiva e corresponde à imagem de uma mulher sozinha numa sala de um museu a observar aquele quadro especial e único. Mas o título tal como está grafado, numa subserviência ao novo acordo ortográfico é um disparate. “O Nervo Ótico” para traduzir “El Nervio Óptico”! O Dicionário da Língua Portuguesa distingue de forma clara: ótico= do ouvido; relativo ao ouvido e óptico= referente à óptica ou à vista; visual.

Costumo ignorar as sinopses na contracapa dos livros, mas esta é perfeita, sintética e muito completa, suficientemente sugestiva e não enganadora.

O livro é constituído por onze capítulos distintos em que a autora/narradora nos guia por momentos diversos da sua vida enquanto criança, jovem adolescente, adulta, desvendando-nos acontecimentos em que os pais, ou os irmãos, amigas/os, familiares, o marido ou ela própria são protagonistas. São quadros da sua vida que vai associando a quadros de pintores que ela visita em museus na Argentina ou noutras partes do mundo, alguns argentinos menos conhecidos, outros mais famosos. A sua formação em História da Arte permite-nos seguir pelo livro como se acompanhássemos uma guia em visita a um museu, enquanto nos convida a reflectir sobre temas tão diversos como os medos, a infância e a velhice, a fragilidade da vida, mas usando frequentemente um tom bem humorado.

Alguns breves traços desses capítulos:

Como para ela os museus são uma espécie de abrigo, pois “o meu instinto de sobrevivência leva-me sempre aos museus”, a recordação de um dia em que o ar da cidade de Buenos Aires ficou irrespirável devido à poluição e às cinzas de um fogo descontrolado, levou-a a tentar ver as telas de Candido López, um pintor argentino conhecido pelas cenas de guerra para quem o fogo e o fumo eram o mais difícil de pintar.

A partir da ideia presente em todo o livro de que “escrevemos uma coisa para contar outra”, a cena de caça pintada por Alfred de Dreux em que um cervo é encurralado por cães fá-la recordar a morte acidental de uma amiga apanhada por uma bala perdida.

Quando fala da amiga de infância - Alexia - a sua outra metade, uma espécie de “amiga genial”, cheia de contradições e de disfarces, associa-a à personalidade do japonês Fujita, o pintor de gatos, um verdadeiro camaleão ao longo da sua vida.

A atracção de Courbet pelo mar tempestuoso fá-la recordar uma prima invulgar também chamada María que um dia se afogou e que cobria as paredes do quarto com recortes azuis de revistas, numa colagem de mar revolto.

Os cavalos, um dos temas favoritos de Toulouse-Lautrec dão ensejo a que recorde um episódio vivido pela prima – Amalia – que conhecera duas japonesas a quem dera aulas de conversação em espanhol e que viviam numa casa encostada a um hipódromo. O traço comum entre a jovem japonesa e Toulouse-Lautrec foi o destino trágico de ambos cuja vida os marcou por uma deformidade física.

A referência a Rothko aparece em dois momentos: numa reprodução na sala de espera do consultório de um oftalmologista que a narradora consultou por causa do “olho louco” e numa imagem junto à cama do hospital onde o marido está internado. São apenas reproduções.  Mas para ver Rothko, tem que se ver uma tela ao vivo, porque uma reprodução não consegue ter a força das cores vibrantes deste pintor. Artistas invulgares e que ganham notoriedade dificilmente conseguem deixar de ser alvo de críticas e de invejas, mas ao contrário de outros pintores que são engolidos pelo sistema, Rothko não se vendeu ao “dinheiro podre”.

A imagem do tio Marion fica associada à liberdade, ao desejo de romper com as prisões, com as convenções, mesmo quando nas visitas que faz aos sobrinhos lhes leva um colibri numa gaiola, sabendo que dificilmente ele irá sobreviver. Com efeito, “encerrarias num frasco os raios de sol?”

O medo de andar de avião, coisa que passou a ser persistente com a idade, leva a narradora a falar sobre a arte de Henri Rousseau e de como os balões de ar quente o fascinaram e em muitas das suas pinturas o céu é cortado por balões e outras máquinas de voar.

María Gainza fala da sensação que teve ao olhar “La Niña Sentada” uma pequena tela de Schiavoni e reconhecer-se nesse quadro quando era criança. Embora seja para ela um motivo de alegria rever-se naquele quadro, com a idade tem evitado visitar-se com frequência. O confronto com o que fomos e o que somos nem sempre é feliz!

O último capítulo, episódio, conto… é ensejo para falar da pintura de El Greco, pintor cuja obra ela viu numa visita que fez ao irmão mais velho que vive nos Estados Unidos. Um irmão com quem sempre teve uma relação difícil. Anos mais tarde, a família recebeu a notícia do seu falecimento repentino. Também um dia, a autora se vê confrontada com um tumor que a vai pôr em contacto com “um grupo de iluminados que vem diariamente fazer rádio” e parece que há em todos eles uma tranqulidade, uma capacidade de viver sem ansiedade. Cito as frases com que termina este livro diferente, especial: “Sinto uma suave felicidade no cair da neve, felicidade poética, acho que é assim que dizem. Daria um braço para me lembrar de quem lhe chamou assim.”

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
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