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As mulheres que assediam homens e outros mitos

Enquanto homem, não posso dizer o que é estar do outro lado do piropo. Posso, contudo, contrapor à ideia absurda de que as mulheres também assediam os homens a minha experiência de vida.

Ficou famoso recentemente um vídeo que mostra uma mulher a ser constantemente assediada num só dia enquanto anda pelas ruas de Nova Iorque. Fazendo as contas, a mulher ouviu cem piropos em dez horas, uma média de dez por hora ou um a cada seis minutos. O vídeo não traz nada de novo para as mulheres que ousam sair de casa ou vestir algo mais “provocante” que uma burqa ou para os homens que acreditam no que as mulheres lhes contam e não pensam que elas fazem parte de uma conspiração mundial de “feminazis” que querem castrar os homens. Mas isso não impediu que o vídeo fosse extensamente criticado na internet por homens que garantiam não ver nada de mal em dizer um “olááá!” a uma mulher que passa, com alguns a chegar ao ponto de sugerir que a mulher deveria ser violada para aprender o que é “assédio a sério”.

Enquanto homem, não posso dizer o que é estar do outro lado do piropo. Posso, contudo, contrapor à ideia absurda de que as mulheres também assediam os homens a minha experiência de vida.

Creio que o meu primeiro contacto com o mundo nojento do piropo terá sido quando tinha uns dez anos. Junto à casa onde vivia, havia uma fábrica têxtil, onde trabalhavam apenas mulheres, e umas obras, onde trabalhavam apenas homens. Para quem vive no planeta Terra, não é difícil perceber de que lado vinham os piropos. Lembro-me de assistir, chocado, aos homens a mandar bocas obscenas a miúdas da minha idade que passavam na rua. Não era um feminista nesta altura, era até um dos muitos rapazes que levavam porrada (mais que merecida) das raparigas por serem completamente idiotas com elas, mas chocou-me pensar que, numa sociedade em que um suspeito de pedofilia poderia ser linchado pela população, o assédio a raparigas novas era visto como algo aceitável.

Comecei a conhecer melhor o mundo do assédio uns anos mais tarde quando, nos meus anos de adolescente, comecei a sair à noite. Não foram poucas as vezes em que amigas me pediam para as “proteger” dos idiotas que achavam que iriam conseguir levá-las para a cama se passassem toda a noite a persegui-las. Elas já sabiam, como eu sabia, que agarrarem-se a um amigo, fazendo de conta que era o seu namorado, era uma forma segura de evitar o assédio. Infelizmente, a única forma eficaz de contrariar o machismo do assédio parecia ser recorrer ao machismo do “não cobiçarás a mulher do próximo”.

Olhando para trás, penso que posso dizer com toda a certeza que nunca fui assediado por uma mulher. Nunca ouvi um piropo na rua nem nunca tive uma mulher a perseguir-me numa discoteca. Não sei o que é ter de sair de um espaço público por não conseguir escapar ao assédio e o sorriso que esboço quando penso na imagem mental de um homem a ser perseguido por hordas de mulheres, ao estilo dos anúncios da Axe, é demonstrativo do quão absurdo é pensar que os papéis de género podem ser invertidos.

Alguns homens poderão dizer que o meu problema é que simplesmente não desperto o interesse das mulheres. Pode ser que sim. Mas a verdade é que também nunca vi um só homem a ser assediado por uma mulher. Nunca vi um homem a passar por um grupo de mulheres e a enfrentar um conjunto de olhares esfomeados. Nunca vi uma mulher a meter-se à frente de um homem que não conhece enquanto ele dança sozinho numa discoteca. Nunca vi sequer uma mulher a mandar um “bom diaaa!” a um homem que não conhece. Só posso, portanto, concluir que os homens que dizem levar com piropos e outras formas de assédio por parte de mulheres de forma regular estão a mentir.

De todas as vezes que uma mulher denuncia um caso de sexismo, aparecem vários homens a desvalorizar o caso, a insinuar que ela está a ser paranóica ou a dizer que as mulheres também fazem o mesmo. A esses homens, só posso recomendar que tentem pôr-se do outro lado e imaginar o que é ser assediado a vida toda. Podem começar com um exercício simples: pensem em quantas vezes ouviram um piropo na vida e depois perguntem o mesmo a uma mulher, a ver se ela sabe dar outra resposta que um “não faço ideia, talvez centenas”.

O assédio sexual é um problema grave porque representa uma invasão da privacidade da outra pessoa. Não se confunde de qualquer forma com um comentário elogioso, jocoso ou até brejeiro entre pessoas amigas. Trata-se antes de uma agressão, mesmo que não envolva contacto físico, que provoca no mínimo embaraço e desconforto na mulher.

Um homem que seja capaz de se pôr no lugar da mulher que é assediada não terá dificuldades em perceber porque é violento o assédio. Evidentemente que há graus de violência e que um apalpão é mais violento que um piropo e uma violação é muito mais violenta que um apalpão. Mas discutir apenas graus de violência e não a violência em si é uma forma de desvalorizar a “pequena violência” até ao ponto da insignificância. Não sei se algum homem faria isso com o piropo se soubesse o que é levar com piropos todos os dias.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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