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Vítor Bento, os novos e velhos nacionalistas e a salvação da Pátria com a saída do euro

A sugestão de Vítor Bento para a discussão da saída do euro é simplesmente um favor à medida da senhora Merkel.

Para surpresa de muitos, o economista Vítor Bento veio recomendar uma discussão sobre a saída do euro: “Não devemos recusar discutir esse assunto como se fosse um dogma religioso” (Público, 19 de Dezembro). Vítor Bento é conselheiro de Estado, nomeado pelo presidente (em substituição de Dias Loureiro), um dos homens poderosos em Belém e na finança portuguesa, e seria o mais insuspeito defensor desta hipótese.

Um frémito de entusiasmo perpassou por isso pelas fileiras nacionalistas. Pois se até em Belém! Se até a finança! Se até Cavaco Silva! O que tem de ser tem muita força! Os nacionalistas sentem chegada a sua hora: de Sua Majestade D. Duarte Nuno aos maoístas e ao novo partido que os imita, soam as trombetas – vamos à rua, que agora é lutar pelo essencial, salvar a Pátria, sair do euro e da União Europeia, ressuscitar o escudo, reconstruir a economia, convocar os bons espíritos.

“Devemos ter disponibilidade para discutir todos os cenários”, acrescenta, ponderadamente, o conselheiro de Estado. Discutamos, pois.

Mas discutamos com ideias e entre ideias: uma questão essencial não pode ser tratada como jogos florais. Pois, perguntado pelos efeitos deste “cenário”, Vítor Bento logo acrescenta, impávido: “haverá uma queda do valor dos salários e das poupanças entre 30 e 50%. Ou seja, teríamos um grande e imediato empobrecimento”. E, conclui, “A situação será caótica”.

Fica assim evidente o que significa esta sugestão do conselheiro: ele quer simplesmente demonstrar que não há nenhuma alternativa à dívida. Só o caos. Ele quer aterrorizar a sociedade, com a ajuda de quem afirma que não existe outra saída senão o escudo, ou seja, outra forma de austeridade e de empobrecimento. Bento espera que, se a única alternativa ao empobrecimento é o empobrecimento, as pessoas escolham empobrecer e ainda agradeçam.

Nesta crónica, em que repito muito do que escrevi há pouco noutro texto, respondo a Vítor Bento com dois argumentos. O primeiro é que a saída do euro deve ser recusada agora, porque é a pior das soluções, e a pior das soluções só pode ser aceite quando não há mais nenhuma.

O segundo é que há alternativas tanto à austeridade da troika quanto à austeridade dos nacionalistas com o seu novo escudo.

Para ficar claro, o que critico é o nacionalismo, envergonhado ou agressivo, que anuncia um milagre com a saída do euro. Não discuto aqui os estudos de economistas que, com consistência, têm procurado alternativas à crise da dívida, como as apresentadas pelos relatórios de Costas Lapavistsas e os seus colaboradores, que comentarei noutra ocasião. Pelo contrário, o que escrevo de seguida converge com muito do que afirmam nesses estudos, nomeadamente sobre os riscos concretos da situação de transição com uma nova moeda.
 
Uma sexta-feira à noite
Suponhamos que o governo decidiu sair do euro e ressuscitar o escudo. Mandou por isso imprimir em segredo as notas de escudo e prepara-se para anunciar a novidade, numa sexta à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já estão fechados (ou decreta um feriado bancário durante vários dias). Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa entrar imediatamente em circulação.

O que vai acontecer é que toda a gente vai descobrir que se prepara a nova moeda. Esta operação de lançamento do escudo envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias. E, de qualquer modo, toda a gente assistiu nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que isto vai muito mal e precisamos de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo, toda a gente percebeu o que vai acontecer.

O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, todas as suas poupanças vão ser transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Os trabalhadores que depositaram salários e poupanças vão ser as primeiras vítimas da nova política. E por isso vão tentar salvar o que puderem.

Ora, os bancos não querem nem podem pagar aos clientes todos os seus depósitos, simplesmente não têm o dinheiro para isso – nem há notas suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe em Portugal (a massa monetária é a soma das notas e moedas em circulação com os depósitos nos bancos, e os bancos não guardam todo esse dinheiro, porque emprestam grande parte dele). Os bancos vão por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina ou na Rússia, foi assim em todos os casos em que se anunciaram grandes desvalorizações (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União Europeia).

Os nacionalistas, que propuseram a saída do euro, começam agora a ter a primeira dificuldade. É que vão defender o exército e os bancos contra a população. E vão ter de fazer a sua primeira vítima, os depositantes nos bancos. A conta é fácil: se a desvalorização for de 50%, as poupanças e depósitos vão perder metade do seu valor.

O milagre das exportações
Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo desvalorizou-se então 50% em relação ao euro. O governo aposta nessa desvalorização para recuperar a economia e espera que o efeito benéfico seja o seguinte: as exportações aumentam porque se tornam mais baratas em euros e dólares, enquanto as importações diminuem porque se tornam mais caras em escudos. Assim, haverá uma deslocação de capital para as indústrias e serviços exportadores e uma redução do consumo e das importações. Tudo isto melhora substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a vida melhorar para Américo Amorim, o dono da maior multinacional industrial portuguesa, ou para outras empresas exportadoras, melhorará também para toda a economia.

Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o preço dos produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou a custar uma vez e meia o seu preço anterior (e todo o sistema de transportes também), e o mesmo acontece com os alimentos importados ou com os medicamentos, entre tantos bens de primeira necessidade.

Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o consumo corrente, imagina-se o efeito imediato destes aumentos de preços no salário.

Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no estrangeiro queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde que não haja recessão no estrangeiro, e que os produtos portugueses correspondam a mercados com procura crescente, e que as suas características acompanhem as exigências dos consumidores estrangeiros, etc.). Talvez aumentem. Se aumentarem, será em todo o caso devagar: as receitas das vendas só entram quando se fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção – e é preciso ter dinheiro para investir. Depois, o que Portugal exporta inclui o custo da matéria-prima e outros produtos que são importados, que são mais de metade do valor das exportações, e que ficaram mais caros. Por isso, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde.

A dívida dos bancos duplica a dívida pública
Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa. Emprestou em euros e deve em euros aos bancos estrangeiros, mas vai receber em escudos dos devedores em Portugal.

O banco perdeu assim metade do valor dos seus créditos. O banco vai por isso à falência. É por isso que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será necessário nacionalizar todos os bancos, não tanto para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Salvar os bancos tem um custo, e não é pequeno: a dívida pública portuguesa duplica imediatamente com as dívidas dos bancos, que antes eram privadas e passam a ser públicas porque foram nacionalizadas.

Chegados aqui, já sabemos o que se vai passar: os nacionalistas vão propor um aumento de impostos para pagar as dívidas da banca ao estrangeiro, isto é, para financiar a banca internacional.

Mais impostos

Voltemos agora aos problemas que os nacionalistas estão a viver no apoio ao governo que decidiu a saída do euro. Já têm contra si quem vai pagar mais impostos, viu multiplicar as suas dívidas, paga mais pelos alimentos, transportes e medicamentos, ou perdeu parte das suas poupanças e depósitos. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros mas os impostos são recebidos pelo Estado em escudos, e são precisos cada vez mais escudos por cada euro), e a saúde e a educação têm novos cortes.

Por outras palavras, os nacionalistas que defendem a saída do euro meteram-se numa alhada. Os que diziam que queriam impedir a austeridade, acabam a propor um sistema de mais austeridade, toda orientada para o benefício de um sector social, a indústria exportadora, e promovem a queda dos salários e das pensões. Não resolveram nenhum problema e criaram novas dificuldades. E perdem o respeito dos trabalhadores, que estão a ser prejudicados.

Combater para vencer a austeridade e o empobrecimento
A política socialista tem um critério que é o da defesa da classe trabalhadora. Essa política é a que defende o salário e se bate por ele, e não a que sacrifica o salário. A solução autoritária de saída do euro é uma proposta de mais austeridade. Não há por isso nenhuma razão para a defender como alternativa para defender o salário. A saída do euro é uma solução que só pode ser aplicada quando não exista nenhuma outra, quando se esgotarem todas as alternativas, quando a sobrevivência o exigir.

E, como a saída do euro nunca virá da vontade de um governo de bloco central, mas só poderá resultar, nas presentes circunstâncias políticas, de um diktat da Alemanha, temos todas as razões para contrariar a ameaça que representa. Só a senhora Merkel, na sua prepotência, pode concretizar o sonho dos nacionalistas. A sugestão de Vítor Bento para a discussão da saída do euro é simplesmente um favor à medida da senhora Merkel.

Enfrentemo-la. Se a saída do euro é um milagre de fantasia e só pode garantir degradação dos salários e pensões, a austeridade que temos realmente é a outra, a da troika. E, essa austeridade, a que Vítor Bento quer promover e defender, é a que temos de vencer.

É contra ela que a esquerda se deve juntar. A esquerda, contra os nacionalistas. A esquerda mesmo, a que faz a auditoria à dívida, porque não aceita que o povo pague o que não deve. A que exige a ruptura com a troika, e considera que ela estabelece uma dívida ilegítima. A que sabe que sem soberania não há democracia, e que é democracia que é precisa para impedir a alteração das leis laborais, a facilitação dos despedimentos, o aumento das taxas moderadoras ou a destruição da segurança social. A esquerda que mobilizou para a greve geral e que sabe que em 2012 será necessário um novo fôlego para mais protesto e acção social, dos contribuintes, dos reformados, dos desempregados, dos precários, dos trabalhadores, dos defensores do Serviço Nacional de Saúde, dos utilizadores dos transportes públicos, de todas e de todos os que sofrem a austeridade.

A única alternativa é a luta geral. Ao caos de Vítor Bento, a esquerda opõe a democracia da defesa do salário e das pensões. A luta social pela maioria.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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