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As três irmãs, a voz do dono

A finança tornou-se dona do mundo. Um dos instrumentos desta dominação são as três irmãs, as principais agências de rating, que dominam quase 95% deste mercado mundial.

Durante muito tempo, habituámo-nos a conhecer a finança pelas histórias dos financeiros. As grandes dinastias europeias, os Rotschild, os Fugger, e norte-americanas, os Morgan, os Rockefeller, os Carnegie, alimentavam de mistério e suspense os livros de Zola ou de John dos Passos. Em Portugal, a família Espírito Santo nascia pelas mãos de um filho secreto de um temido comissário das polícias, o conde de Rendufe, que teve a generosidade suficiente de financiar uma casa de câmbios ao seu rebento – e daí nasceu o banco. Henry Burnay, que criaria o banco com o seu nome, enriqueceu com o favor do rei, que lhe cedeu o contrato do monopólio dos tabacos. Um empresário determinado, Alfredo da Silva, a quem o embaixador inglês chamaria o “rufião pitoresco”, criava a indústria pesada no Barreiro e alguns bancos para lhe servirem de caixa registadora, e finalmente casava a filha com um aristocrata arruinado, de nome Mello. Eles eram a finança.

Durante a ditadura, a finança exibia-se. Ricardo Espírito Santo frequentava Amália Rodrigues e visitava sua excelência o presidente do conselho, António de Oliveira Salazar, aos domingos, às cinco da tarde. Em 1968, tão longe de Paris e de Praga, o magnate do estanho boliviano, Patiño, recebia na sua quinta do Alcoitão, em Sintra, e a condessa de Schlumberger recebia na Quinta do Vinagre, em Colares: a imprensa atropelava-se nos portões para fotografar as entradas de Audrey Hepburn, Zsa Zsa Gabor, Gina Lollobrigida, dos veteranos Douglas Fairbank e Valentino ou dos mundanos Henry Ford, Aga Khan e Rockefeller, que vinham passar a noite na festa. A finança fazia-se notar.

Em contrapartida, hoje a finança usa máscara. Warren Buffett, o segundo homem mais rico do mundo, faz falar de si, tanto pela fortuna acumulada quanto pela anunciada disposição em pagar algum imposto por ela – é o homem que se queixou de que pagava uma taxa de IRS inferior à da sua secretária. Sim, Buffett faz-se conhecer. Mas se a sua empresa, a Berkshire Hathaway, estivesse refugiada num offshoree escondida atrás de um biombo de sociedades, ninguém saberia qual o valor da sua fortuna nem porventura quem seria o seu dono. E é assim com a maior parte das fortunas, das propriedades, das empresas financeiras, dos fundos de investimento – a finança desapareceu, mesmo que seja mais poderosa do que nunca.

Este labirinto de poder e de dinheiro multiplicou-se desde há trinta anos. O início da desregulação do sistema financeiro, com a Margaret Thatcher em Inglaterra, e depois com Ronald Reagan nos Estados Unidos, provocou uma hecatombe. Em poucos anos, a anulação do controlo dos movimentos de capitais – algo a que o capitalismo moderno tinha resistido denodadamente, porque os governos nacionais sabiam que isso significaria um colossal rombo nas suas receitas fiscais e na sua capacidade de influenciar o câmbio da moeda – gerou offshores, a circulação mafiosa dos capitais, a evasão fiscal generalizada, a concorrência internacional sem limites, o colapso dos sistemas de câmbios. A política monetária tornou-se perigosa, o controlo dos câmbios virtualmente impossível. A finança tornou-se dona do mundo.

Um dos instrumentos desta dominação são as três irmãs, as principais agências de rating, que dominam quase 95% deste mercado mundial: a Standard & Poor’s e a Moody’s, com 40% do mercado cada uma, e a Fitch, com cerca de 14%. O seu negócio é simples. Quando um governou ou uma empresa querem emitir títulos de dívida – que constituem obrigações de pagamento futuro, com um determinado juro contratualizado – estas agências certificam o “valor” desses títulos, isto é, emitem um parecer sobre a garantia desse pagamento. Fazem-no a partir da informação disponível e da sua opinião acerca das condições financeiras do Estado ou da empresa em causa. Este parecer é resumido numa notação, uma etiqueta que fica pendurada nos títulos em causa: “AAA” se forem os melhores, “lixo” se for duvidoso o cumprimento do contrato pelo emissor dos títulos.

Claro, as empresas são pagas por isso – afinal, a notação é um negócio. E muito bem pagas, porque as taxas que cobram chegam, em alguns casos, a ficar entre 1,2 e 2,5% do valor da emissão de obrigações. Imagina um banco que quer emitir um título a partir de um pacote de créditos à habitação, que tem na sua carteira, e que quer vender a outra instituição financeira, declarando um valor de 5000 milhões de dólares; pois a agência de notação pode cobrar alguns 100 milhões de dólares pela sua etiqueta.

Este mercado de notação cresceu vertiginosamente nos últimos anos, com a multiplicação da alavancagem das instituições financeiras e com a titularização dos seus produtos – isto é, com a venda de uns para os outros destes pacotes de créditos e de promessas de pagamento, sempre com valores crescentes. As agências de notação tornaram-se o epicentro desta onda financeira, porque os fundos de pensões ou de investimento, onde se acumulam ou os descontos dos trabalhadores, as receitas dos superávites comerciais de alguns países ou outros capitais, só investem com essa garantia.

Assim, as informações erradas transmitidas por estas agências tornaram-se um perigo para as economias. A razão é simples: gigantescas massas de capital foram investidas em produtos que não tinham o valor anunciado, e por isso sofreram uma forte desvalorização com grandes perdas, como aconteceu na crise do subprime norte-americano – precisamente, uma coleção de títulos de créditos à habitação que estavam grotescamente sobrevalorizados.

Alguns dos maiores falhanços destas agências ficaram bem registados e são muito recentes. O primeiro é o do subprimee dos bancos e companhias de seguros que mais tinham beneficiado da inflação inicial do valor destes títulos: a AIG, a maior seguradora mundial, o banco Bear Stearns e todo o sistema financeiro islandês tinham a melhor notação AAA, no exato momento da sua queda. O banco Lehman Brothers, cujo colapso desencadeou a crise de 2007, era etiquetado AA ainda minutos antes de anunciar que tinha falido. O banco de crédito hipotecário Freddie Mac, outro dos gigantes financeiros que mergulhou no escândalo do subprime, tinha nota A1 no catálogo da Moody’s, até ao momento em que Warren Buffet, o maior acionista da agência e a que nos referimos atrás, ter apresentado numa televisão as suas dúvidas sobre a sua credibilidade. No dia seguinte, a Moody’s desceu o rating em cinco níveis, para apenas um nível acima de lixo, e o governo ultra-liberal de Georges Bush foi obrigado a nacionalizar o banco.

Ora, estes erros não podiam surpreender quem conhecesse o historial destas empresas. Em 2001, quatro dias antes da falência da maior empresa de energia dos Estados Unidos, a Enron, e quando as ações já tinham descido de cerca de 60 dólares para pouco mais de 4, as três irmãs ainda recomendavam a compra destas ações – embora soubessem das suas dívidas de biliões de dólares e que outras empresas já recusavam fazer contratos com a Enron. As agências de notação fizeram-se notar pelos erros dramáticos na sua notação.

Erros? Vejamos quem são então estas agências de notação. A mais pequena, a Fitch, é uma subsidiária do grupo francês Fimalac. As duas mais importantes, como vimos, são a Moody’s e a Standard & Poor’s, que pertence ao grupo editorial MAcGraw-Hill. O principal acionista da Moody’s é Warren Buffett, ele próprio um grande investidor financeiro. A informação da sua empresa enriquece-o. Mas é nos outros acionistas que começamos a encontrar as maiores surpresas: é que, entre estas duas empresas que têm juntas 80% do mercado de notação financeira num mundo de finanças, alguns dos maiores accionistas são os mesmos. Na Moody’s e na S&P, a Vanguard tem numa 5,02% e noutra 6,9%, a Price T. Rowe tem na primeira 2,61% e na segunda 4,81%; a Alliance Bernstein tem 3,94% e 1,63%; e a Capital World Investment tem 12,6% e 9,99%. Aqui têm: quatro dos maiores acionistas são comuns às duas irmãs e detêm 24,17% da Moody’s (com Buffett este valor chegar a 36,97%) e 23,33% da S&P. Por outras palavras, os fundos financeiros dominam as agências de notação cujas avaliações exigem na hora de decidir a aplicação dos seus investimentos, e são os primeiros beneficiários das operações destes mercados financeiros. Quando erram ou quando dão informação fidedigna, as agências fazem os seus donos ganhar as apostas.

(publicado na revista electrónica Comuna)

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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