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Letizia vestiu roupa em segunda mão?

Portugal verga-se, entusiasma-se, desbarreta-se, festeja como se fosse a anunciação da ressurreição sabe-se lá do quê.

O país adorou. As televisões seguiram em directo os três dias, chave do Porto e chave de Lisboa, cerimónias de fraque, jantar em paço ducal, cada visita era uma revelação, esperava-se o momento em que a rainha ou o rei dissessem para algum doente, “levanta-te e anda”. Milagre suave foi em todo o caso esta adoração dos reis, antes dos que chegam pelo Natal e são companhia garantida. Mas estes, que enlevo, majestades, sabem mesmo dizer umas palavras em português. Nunca um chefe de Estado que nos visita teve direito a esta genuflexão.

Alguns partidos, cujo monarquismo foi sempre mal escondido na tristeza do fim da realeza desde há um século e na consumição penosa de D. Duarte Nuno pelos tempos modernos, rejubilaram como se o mundo se desfizesse em fogo de artifício, foram os dias mais felizes das suas vidas, uma vénia a um monarca e um beijo na ponta dos dedos de uma rainha e é a consagração de uma devoção. Enfunados, preparam agora uma revisão constitucional cirúrgica para impor a obrigatoriedade do aplauso de todos os parlamentares, sobretudo contra os toscos que acham que podem discordar de palavras régias, era o que faltava que a plebe se armasse em direito de opinião, no que isso poderia dar se lhes damos rédea solta.

A corte espanhola adorou também. Afinal, é a terceira vez que um rei de Espanha fala no parlamento português e nunca um presidente de Portugal falou nas cortes espanholas. Encontraram e submeteram uma diplomacia parola de um país que se acha pequenino e que não sabe exigir reciprocidade, assim ficou o registo de Portugal no itinerário dos reis. Portugal verga-se, entusiasma-se, desbarreta-se, festeja como se fosse a anunciação da ressurreição sabe-se lá do quê.

Mas foi então que caiu a bomba da desilusão. A SIC revelou, numa peça em hora de ponta, que a rainha afinal tinha usado num destes jantares de gala o vestido que já envergara num casamento no Luxemburgo. Logo no Luxemburgo, um país mais pequeno do que a Amadora, é claro que tem um duque, alguma coisa havia de brilhar, mas usar roupa em segunda mão? Repetir um vestido? Afronta, tristeza, ela se calhar não gosta de nós, veio por desfastio. E logo veio o pior, a humilhação. Afinal, noutro jantar os brincos eram os mesmos do seu próprio casamento. Em vez de os guardar em arca de cânfora, em redoma de vidro, ei-los a desempoeirarem por um qualquer jantar neste cantinho à beira-mar plantado. Mas nós não merecíamos mais? Não nos habilitamos a um Dior ou um Versace novinhos, por estrear? A pérolas ainda não gastas em galas? Somos a repetição de um evento luxemburguês ou a recapitulação do casamento? Pensava ela que não daríamos pela afronta, que ninguém faria televisão com isso, que os programas matinais não se incendiariam de despeito? Portugal gelou.

E, digo-vos, isto não é coisa que passe depressa. Não nos esqueceremos de como suas majestades nos trataram, levaram as chaves e nem nos deram a atenção de evitar roupa em segunda mão, pois sentimos estas escolhas, é de pequenos gestos que se fazem as grandes gestas.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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