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Como vão ser integrados os precários do Estado?

Este compromisso entre Governo e os partidos à esquerda é histórico. Mas há perguntas muito importantes que têm de ser feitas.

Ao longo de décadas, a precariedade foi-se instalando e o Estado não foi exceção. Dezenas de milhares de pessoas exercem todo o tipo de funções indispensáveis ao funcionamento dos serviços públicos sem terem o seu vínculo reconhecido – e portanto, sem os direitos e a proteção social que lhes é devida. Pela primeira vez em muitos anos, este processo pode começar a inverter-se. Foi aprovada uma norma para regularizar os precários da Administração Pública e do setor empresarial do estado. Este compromisso entre Governo e os partidos à esquerda é histórico. Mas há perguntas muito importantes que têm de ser feitas. As respostas vão, em grande medida, depender do que cada um e cada uma fizer entretanto.

Quem são os precários do Estado?

Um estudo recente, da autoria do economista Eugénio Rosa, fez um levantamento com base em dados públicos. Dos 659.149 trabalhadores da Administração Pública (central, regional e local), 14,3% (ou seja, 94.427) tinham contratos a prazo, eram tarefeiros ou tinham avenças, nomeadamente através de recibos verdes. Além disso, revela o estudo, haveria 15.627 pessoas com Contratos de Emprego Inserção a trabalhar para o Estado (isto é, a trabalhar sem contrato e apenas com uma bolsa de 84 euros no caso de serem desempregados com subsídio). Somando estes valores, chega-se ao número de 110 mil precários da Administração Pública.

Mas estas contas não chegam se estivermos a falar dos “precários do estado”. Por dois motivos. Primeiro porque, entre estes 110 mil, pode haver uma pequena minoria de pessoas em modalidades que correspondam verdadeiramente à sua função e condição laboral – é possível, por exemplo, que haja verdadeiros independentes a prestar um serviço ao Estado. Mas sobretudo porque faltam a estes números outras pessoas, que também devem ser contabilizadas. Entre elas, devemos somar os bolseiros da Fundação para a Ciência e Tecnologia que exercem funções subordinadas em centros de investigação (e que são alguns milhares), devemos somar os estagiários dos programas PEPAC e PEPAL, que trabalham para o Estado. Devemos somar, ainda, um conjunto de pessoas a trabalhar para o Estado por via de falsos outsourcings e que, não aparecendo nas estatísticas da Direção Geral da Administração e Emprego Público (porque são colocadas por empresas privadas ou de trabalho temporário que “fornecem serviços” ao Estado), também trabalham para o Estado.

É por isso que é tão importante o Diagnóstico sobre a Precariedade na Administração Pública e no setor empresarial do estado que o governo ficou de fazer e tornar público. Só que, mesmo estando obrigado a divulga-lo até ao final de outubro, até agora o relatório continua clandestino. Sem este levantamento, que é a base do processo de regularização, continuamos a não conseguir responder àquela pergunta – e a não saber como pretende o Governo contabilizar estes trabalhadores. Se o relatório, por exemplo, não contabilizasse as pessoas que trabalham para o Estado por via de outsourcings ou de empresas de trabalho temporário, estaríamos perante uma falha grave, que levaria à ocultação de uma dimensão importante do fenómeno.

Quais os critérios para integrar este processo de regularização?

Depois de muitos meses de insistência e de trabalho, houve finalmente um acordo de princípio para regularizar os precários do Estado, incluído no Orçamento de Estado para 2017. Essa norma estabelece três critérios para o processo de regularização e de vinculação ao Estado. Mas alguns deles podem ser problemáticos.

O primeiro critério é a “subordinação hierárquica”. O critério faz sentido porque este é um dos indícios de laboralidade, que permite distinguir uma verdadeira avença de um trabalhador subordinado cuja relação laboral esteja a ser dissimulada por um falso recibo verde, por uma falsa bolsa ou por um falso outsourcing.

O segundo critério é o do “preenchimento de necessidades permanentes”. Este critério também é razoável, na medida em que, de facto, a maioria dos contratos a prazo estão a ser ilegalmente utilizados para preencher necessidades essenciais ao funcionamento dos serviços, o mesmo acontecendo com recibos verdes ou contratos de emprego inserção. Mas é preciso acautelar o modo como é interpretado. Por exemplo: um bolseiro de investigação que esteja há 15 anos num centro, mas sucessivamente integrado em projetos diferentes que dependem de financiamentos específicos, preenche uma “necessidade permanente”, ou vai cair fora deste critério?

O terceiro critério é haver um “horário completo”. Este critério não faz qualquer sentido. Ter horário completo não é nenhum critério de laboralidade. Não é por eu ter um horário de 30 horas como professor ou formador que não tenho direito a ver o meu vínculo reconhecido, mesmo que seja a tempo parcial. Muitos professores com contratos a termo sucessivos, ou formadores a falso recibo verde do IEFP, não têm horários de 40 horas. Mas não são menos precários por isso – e seria inaceitável que ficassem de fora do processo.

A aplicação concreta destes critérios será uma disputa e uma luta. É bom que os precários se preparem para o combate.

Como se vai fazer a regularização?

A norma aprovada não define o método através do qual se fará esta regularização. Mas existem dois exemplos do passado e é provável que este processo replique um dos modelos.

Uma possibilidade é um concurso público. Neste caso, para garantir que os precários que já trabalham (alguns há décadas) são integrados, é preciso que o universo do concurso seja o das pessoas nessa condição (quem já cumpra necessidades permanentes de cada serviço mas sem reconhecimento do respetivo vínculo) e que haja um critério que privilegie quem tem experiência no exercício daquelas funções naquele serviço. Foi este o mecanismo utilizado em 1997, quando o Governo de então (era Guterres primeiro-ministro) aprovou uma lei que regularizou 40 mil trabalhadores precários da Administração Pública.

Uma outra possibilidade seria um Tribunal Arbitral. Neste caso, este seria constituído por três partes – um representante dos trabalhadores, um representante da entidade empregadora e um presidente escolhido por acordo – que analisaria caso a caso e reconheceria o vínculo de quem estivesse a preencher necessidades permanentes dos serviços. Foi isso que foi feito em 2008 na Câmara de Lisboa, através de um acordo entre o então presidente António Costa e o Bloco de Esquerda. Esse processoregularizou 800 falsos recibos verdes da Câmara.

Quando é que os precários serão integrados?

A norma inscrita no orçamento define dois prazos. No primeiro trimestre de 2017, o Governo tem de apresentar ao Parlamento o plano de erradicação da precariedade no Estado. Depois, os procedimentos para a integração das pessoas começam em outubro (ou seja, nessa altura deverão ser lançados os concursos). Isto significa que, na prática, a proposta do Governo atira para 2018 a vinculação efetiva destes trabalhadores.

É evidente que estes processos têm exigências formais que implicam prazos. Mas não faz sentido adiar mais a resolução de um problema que já devia estar resolvido há muito tempo. E o atraso na divulgação do Relatório não é um bom indício. Neste processo, como noutros, quem espera nunca alcança. Mais do que ficar a assistir, é preciso que os precários tomem desde já a palavra, como têm feito vários setores através de petições, denúncias, greves ou posições públicas. É preciso ter a persistência para uma luta que será longa e que só agora se inicia. Mas é preciso também a impaciência de quem sabe que não está a exigir nada mais do que decência.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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