You are here

Domesticar o Frankenstein, diga lá outra vez?

Será Trump um epifenómeno? Ou, com mais prudência, seria um cometa breve se não fosse no Estado mais poderoso do mundo? Não, nem isso. Ele é poderoso e temível precisamente por ser um Frankenstein.

O choque foi avassalador mas isso não desculpa tudo. Sim, é certo que nem as sondagens que adivinham tudo, nem os gurus comunicacionais que sabem tudo, nem os governantes que tudo articulam esperavam a vitória de Trump. Percebe-se porquê. Ele parece menos do que nada: sendo um comediante de televisão, não tem ares de ser parte dos beautiful people; sendo um empresário, é artificioso; sendo político, namora o grotesco. E no entanto ganhou, mobilizou uma conjugação eleitoral nada improvável e beneficiou da perda eleitoral do partido rival, virando os resultados onde isso ia virar o país.

Fica então a pergunta que é o prémio de consolação: será Trump um epifenómeno? Ou, com mais prudência, seria um cometa breve se não fosse no Estado mais poderoso do mundo? Não, nem isso. Ele é poderoso e temível precisamente por ser um Frankenstein: é o resultado da construção de um personagem, monstruoso que seja, mas que foi produzido nos mais ousados laboratórios da política, os da desconfiança do futuro, os do líder providencial que traz o milagre e os das soluções fáceis que se baseiam no ódio pelos outros. Ele é por isso a contrapartida da globalização, pois é eleito pelos votos que a crise semeou, mas é também o homem da globalização, pois o seu programa imediato é mais um passo no neoliberalismo onde ele conta mesmo, na desregulação do sistema financeiro.

A sua primeira prioridade programática, e que se pode vir a confirmar pelos nomes que circulam para dirigir as finanças, será o desmantelamento da modesta regulação Dodd-Frank, aprovada depois da crise do subprime. Não me digam portanto que não se trata mesmo da radicalização das soluções neoliberais, envelopadas em autoritarismo e conservadorismo tradicional, como tinha acontecido com Bush – e aliás com alguns dos mesmos personagens.

Mas se é um Frankenstein, uma fabricação dos génios que saíram da garrafa, então foi imediatamente sugerido que pode ser domado. A ideia de o domesticar com uma inundação de bom senso governante e com conselheiros devotados à lei e à grei foi por isso enunciada logo que se descobriu que Trump tinha ganho. Nada acontecerá, o Pentágono, a Casa Branca e o Departamento de Estado porão tudo na linha, ouviu-se de seguida. Roubini foi dos que veio logo tranquilizar os “mercados”, que aliás não se excitaram particularmente com o anúncio do resultado eleitoral porque sabem do que a casa gasta e do que têm a ganhar. No Observador, rapidamente simpatizante de Trump, explicam-se as virtudes do seu programa, que vai seduzindo as direitas europeias.

A contradição interna entre dois campos do partido republicano e a resistência de alguns republicanos contra o arrivista pareciam ainda confortar esta ideia domesticante, reforçada quando Trump começou a preparar um governo bicéfalo, compondo entre os republicanos desavindos.

Mas mais vale tirar daí a ideia. Esperar que o Frankenstein se reduza a uma voz do dono é uma ilusão desarmante, simplesmente porque o melhor é levar Trump a sério e deixar de tratar as suas peripécias como anedotas. Ele inaugura os contactos diplomáticos com um abraço a Farage e uma mensagem a Le Pen e alguns concluem que nem sabe com quem fala. Pois talvez não saiba, mas o facto é que despreza a Europa e é melhor levar isso a sério. Ele rodeia-se de lobistas e de aventureiros, como os seus familiares ou Giuliani ou Gringrich, e Washington ri-se e Berlim sorri, mas é assim que se compõem os poderes e é melhor levar isso a sério. O Frankenstein não vai render-se a um qualquer dono que vai resgatar a humanidade do pesadelo, simplesmente por que ele agora é o dono.

Por isso, é mesmo com Trump que temos que nos haver. O que deixa dois problemas para lhe responder, sabendo que não pode ser domesticado e só pode ser vencido. Primeiro, enfrentar a globalização como o perigo que é, deixando de lado a conversa cúmplice de uma esquerda que fingiu confundir a agressiva liberdade da circulação de capitais com um internacionalismo proletário amigável e que, na Europa, empossou os intelectuais orgânicos com a lenda da “ideia europeia” traduzida em instituições inexpugnáveis. E, segundo, disputar os sectores populares que os fundamentalismos religiosos, as desidentidades e os pavores do futuro têm entregue aos populistas. Combater a globalização e conquistar as massas populares para uma alternativa fazem aliás parte da mesma acção, dado que tudo depende da viabilidade de objectivos comuns, de instituições comuns e de bens comuns.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 18 de novembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
Comentários (2)