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Dylan
Eles foram/são os timoneiros de um barco antigo, das ‘canções de intervenção’ da América do Norte, hinos do sindicalismo operário ou das ligas de camponeses do Midwest americano e da Califórnia. “This land is your land”, cantaram todos eles – e, com eles, muitos milhares de emigrados para a América em busca de um sonho de justiça para as suas vidas.
Depois veio Dylan. De guitarra e harmónica, deixou o manifesto cantado em coro e pôs os descendentes de Guthrie e dos beatniks a trautear em conjunto com os hippies e com os pacifistas da contestação ao Vietnam. Em ‘Mr. Tambourine Man’, em ‘Blowin’ in the wind’, em ‘Forever Young’ ou em ‘Like a Rolling Stone’, as lyrics mudaram o mundo. Sim, não me enganei, mudaram o mundo. Mudaram o mundo porque inflamaram a vida de gente em toda a parte. Como só a melhor poesia é capaz de fazer.
Dylan nasceu Zimmerman e ficou Dylan por homenagem a Dylan Thomas, o poeta galês que preferiu sempre a emoção lírica e as influências surrealistas à escrita militante. A Bob Dylan também não perdoaram que tenha eletrificado a guitarra. Tornara-se mais um do mainstream. E criticaram asperamente a brandura com que passou a viver no establishment, deixando de o denunciar como máquina trituradora da humanidade de cada um/a. Esta foi uma das tónicas dos críticos da atribuição do Nobel, há dias. Se o Nobel fosse um prémio à coerência política, talvez mesmo só Churchill e Saramago, cada um do seu lado, tenham merecido os deles (na literatura, também, coisas do diabo…). E depois vieram dizer que não há livros. Ou seja, que a escrita fora das capas com badana e fora dos refúgios à beira do mar ou no meio da floresta é menor. Os rigoristas acharão sempre que o escritor deve ser uma essência pura sem hesitações nem pecados e os canonistas acharão sempre que o cânone é que vale e que na rua ou no assobio não há elevação que glorifique a humanidade.
Cá na minha, estão ambos enganados. Uns e outros recusam abrir-se à frescura de um gesto heterodoxo e nunca aceitarão que o graffiti ou o rap possa ser arte ou que um pecador possa ser uma referência de vida. Por mim, gosto da decisão de um comité de sábios que deu o prémio maior da literatura a quem escreveu (para cantar) o seguinte: “Quantas vezes tem um homem de olhar para cima/até conseguir ver o céu?/Quantos ouvidos tem um homem que ter/para conseguir ouvir as pessoas que choram?/E quantas mortes serão necessárias até que ele saiba/Que morreu gente demais?/A resposta, meu amigo, sopra-a o vento.”
Artigo publicado no diário “As Beiras” em 15 de outubro de 2016
Comments
Pureza , extraiu os meus
Pureza , extraiu os meus pensamentos desde a raiz ao cerebelo! Haja sempre comentadores por aqui que também falem em cultura e poesia que nos acalente os nossos corações ! Grande Pureza , *ser-se romântico *na boa decifração da palavra, é ser-se revolucionário camarada!
Bem, quem tem dado exemplo de
Bem, quem tem dado exemplo de coerência literária, musical e comportamental é o nosso querido Chico Buarque. Por aqui ele tem sido alvo de ataque de todas as modalidades, porém, continua forte em suas convicções assim como alguém que jamais venderá sua alma. Outro exemplo, do passado foi o Zeca Afonso que deixou seu exemplo indelével de resistência e coragem. Parabéns a todos os que se foram e aos que estão vivos e continuam a lutar por liberdade, educação e melhor distribuição de renda.
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