You are here

Falta a Trump aquele 1%

A vantagem da Direita portuguesa perante a demagogia é que chega um momento em que acaba por ter medo dela.

Parte do que falta a Donald Trump é saber calar. Obviamente, faltam muitas outras coisas. Mas após o debate presidencial entre Clinton e Trump, fica clara uma das razões óbvias para as mais recentes sondagens que colocam o candidato republicano alguns pontos atrás de Hillary Clinton na corrida à Casa Branca: muitos americanos que apoiavam Trump já estão cansados dos ataques pessoais, iníquos, à candidata democrata. Em cada minuto do frente-a-frente, não estava só em causa quem ganharia na batalha de lama em que tantas vezes estes debates se transformam.

Mais do que a vitória técnica ou por "knock-out", este era o momento em que Trump deveria apresentar-se ao Mundo na sua pose de estadista com toques de "enfant terrible". Lamentavelmente, Trump não é uma coisa nem tem outra e perdeu por larga margem. Esteve longe de se preparar para o debate, talvez porque não consiga. Milionário até às costuras mas, ao contrário daqueles 1% de proprietários que terão património imobiliário acima de 500 mil euros, sem saber como bater em retirada e calar.

A vantagem da Direita portuguesa perante a demagogia é que chega um momento em que acaba por ter medo dela. Arrepia caminho. E, nesse momento, cai a ficha: silêncio e santo sepulcro. As primeiras reacções frenéticas perante as declarações de Mariana Mortágua acerca do património imobiliário pretendiam matar o mensageiro para assim matar a mensagem. Usando o limite alto da classe média como pára-raios para enfeitar o embuste, assistimos a um regabofe de espezinhamento colorido, desolados que estavam por não poderem desmaterializar os imóveis e fugir com eles no bolso para um paraíso fiscal. Dói mais quando é na conta. Se (quase) todos os argumentos são admissíveis, já ataques pessoais como estes são semelhantes àqueles que acabarão por tramar Trump. Ninguém gosta da mesma anedota contada duas vezes. Confunde-se com desespero. A deputada do Bloco de Esquerda não foi só atacada pelo contexto, pela circunstância ou pompa do anúncio. Foi atacada pela estrutura: por ser mulher, por ser mais nova do que eles, por ter paternidade de que se orgulha e, já agora, pelo terrível defeito de continuar a defender coerentemente o que sempre defendeu.

Hillary orgulhar-se-á da frase da noite no departamento de política internacional: "um homem que pode ser provocado com um tweet nunca pode ter os seus dedos perto de uma bomba nuclear". Uma questão de códigos e percentagens. Falta a Trump aquele 1% que não se envergonha do silêncio após o debate na lama.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 28 de setembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
Comentários (1)