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A trégua na Síria e a estratégia de saída de Obama

Sem uma agenda que inclua um acordo abrangente para a saída de Bashar al-Assad e permita uma transição para um governo pluralista, não há cessar-fogo que aguente naquele país devastado pela guerra. Artigo de Gilbert Achcar.
Foto Dominique A. Pineiro/Flickr

Como já está à vista de todos, o recente acordo de cessar-fogo na Síria está condenado ao fracasso, tal como estaria qualquer acordo que não resolva o problema político central desta crise. Claro que até um alívio de pouca dura é melhor do que nada (embora a trégua tenha sido desde o início dececionante no que toca à ajuda humanitária).

Mas sem uma agenda que inclua um acordo abrangente para a saída de Bashar al-Assad e permita uma transição para um governo pluralista, não há cessar-fogo que aguente naquele país devastado pela guerra. Se a oposição aceitasse um diktat para abdicar dessas condições, rapidamente seria ultrapassada pelos combatentes, para quem algo menos que a saída do clã Assad seria o reconhecimento de que centenas de milhares de sírios morreram, muitos mais ficaram feridos e boa parte do país ficou reduzido a escombros, para nada.

Para uma trégua levar ao tipo de compromisso que alicerce uma paz genuína, são necessários incentivos fortes para todas as partes no conflito. Foi precisamente pela falta desses incentivos que os Acordos de Oslo, assinados em Washington há 23 anos, fracassaram na resolução do conflito israelo-palestiniano: esses acordos foram baseados no adiamento de decisões sobre todos os temas cruciais, incluindo o destino dos colonatos israelitas nos territórios da Palestina ocupados em 1967. O resultado era previsível: Israel consolidou o seu domínio sobre a Faixa Ocidental na sequência dos acordos, levando ao aumento do ressentimento palestiniano e ao colapso do “processo de paz”.

Sem um equilíbrio das forças militares no terreno na Síria, que obrigaria o regime de Assad e os seus apoiantes iranianos a procurarem um compromisso a sério, um acordo verdadeiramente político não é possível. O que assistimos hoje é quase o inverso: um regime sírio fortalecido pelo apoio iraniano e russo, que se vangloria de estar a conquistar o país inteiro.

Sem um equilíbrio das forças militares no terreno na Síria, que obrigaria o regime de Assad e os seus apoiantes iranianos a procurarem um compromisso a sério, um acordo verdadeiramente político não é possível. O que assistimos hoje é quase o inverso: um regime sírio fortalecido pelo apoio iraniano e russo, que se vangloria de estar a conquistar o país inteiro. Como o comprovam os principais protagonistas, a ideia de criar esse equilíbrio de forças – sobretudo o fornecimento de mísseis terra-ar à oposição, de modo a limitar ao regime sírio o recurso ao poder aéreo, a sua principal arma de destruição em larga escala – foi o principal pomo de discórdia no interior da administração Obama desde 2012. A prova de que este assunto ainda os divide ficou patente na relutância do Pentágono em dar luz verde ao acordo negociado pelo Secretário de Estado [responsável pelos Negócios Estrangeiros] John Kerry.

Foi noticiado (ou melhor, vazado) que os responsáveis pelo planeamento militar dos EUA não acreditavam que o regime sírio e os seus apoiantes russos e iranianos cumprissem um cessar-fogo que tivesse em vista um compromisso. Além disso, o Pentágono não quer partilhar dados militares sobre a oposição síria com a Rússia, por temer que possa ser usada para intensificar os bombardeamentos sobre ela. E têm razões para desconfiar. Kerry já merece um lugar na história como notável personificação da ingenuidade diplomática, i.e, a sua crença na capacidade de resolver conflitos através de negociações que não são apoiadas por ações no terreno (no que foi adequadamente descrito pelo Financial Times como uma “confiança sem limites na sua capacidade de resolver problemas se ele pudesse juntar as partes interessadas na mesma sala”), e a sua tendência a tomar os desejos por realidade no que respeita à vontade de Moscovo em ajudar os Estados Unidos a sair do dilema sírio.

Contudo, é bastante improvável que Barack Obama – que dificilmente poderá ser suspeito de ingenuidade – partilhe das idiossincrasias do seu Secretário de Estado. O presidente dos EUA tem recusado teimosamente alterar a sua atitude sobre a Síria nos últimos quatro anos, apesar das provas concludentes de que estava a permitir que o conflito degenerasse em catástrofe para o povo sírio e mais um enorme desastre para a política externa norteamericana, após o Afeganistão e o Iraque. Ao fazê-lo, Obama apenas conseguiu convencer boa parte da opinião pública árabe que os Estados Unidos, que invadiram o Iraque e bombardearam a Líbia por incomparavelmente menos do que tem acontecido na Síria nos últimos cinco anos, só se preocupam com países ricos em petróleo. Se alguém naquela região tivesse alguma ilusão sobre os pretextos democráticos e humanitários invocados por Washington nas guerras anteriores, já a terá perdido completamente. Como apontou recentemente Anthony Cordesman, um dos mais perspicazes observadores da situação político-militar no Médio Oriente, o presidente dos EUA está agora completamente concentrado numa “estratégia de saída” – embora não uma saída para a crise síria, mas a sua própria saída do cargo.


Artigo publicado em The Nation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

Gilbert Achcar cresceu no Líbano e é professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na  Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres. Autor de obras como The Clash of Barbarisms (2002, 2006); Perilous Power: The Middle East and US Foreign Policy, em coautoria com Noam Chomsky (2007); The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives (2010); The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013); e, mais recentemente, Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).

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