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Afinal a diaba sempre chegou em setembro

Mariana Mortágua tem mais uma medalha ao peito: conseguiu juntar de novo o PSD e o CDS, o que não estava nada fácil.

Na falta do Diabo, venha a diaba.

Passos Coelho bem avisou: é em setembro que chega o demo. E, se não chegou, então mais vale apregoá-lo, alguém acreditará. Ou, como mandam os spin doctors, se há um incêndio em minha casa é melhor atear fogo à cidade porque assim ninguém nota – ninguém nota nem as sondagens tristes, nem a sordidez do apadrinhamento por Passos Coelho do livro do Saraiva, nem a dificuldade de ter candidatos autárquicos, nem o desgosto de não ter havido sanções até agora.

Mariana Mortágua tem então mais uma medalha ao peito: conseguiu juntar de novo o PSD e o CDS, o que não estava nada fácil. Conferência de imprensa conjunta, vociferação, ataque pessoal, tudo como seria de esperar. Afinal, uma pequena taxa sobre os patrimónios imobiliários de mais de um milhão de euros é “ilegal, imoral e inconstitucional”, isto dito pelos ex-governantes que impuseram sem eficácia um imposto de selo de 1% sobre os patrimónios imobiliários de mais de um milhão de euros. Vê-los portanto rasgarem as vestes, porque o investimento vai morrer, porque os franceses se vão embora, porque os Vistos Gold já ninguém os quer, porque os poupadinhos vão ficar prejudicados, porque as heranças serão devastadas, tudo seria comovente se tivesse sentido. Pois que não, como é que se viu, uma deputada discutir soluções fiscais, então não é que ela tomou de assalto o Terreiro do Paço, oh da guarda?

Marques Mendes abriu o caminho na SIC: “é um crime”. Ele não gostou muito de quando Gaspar e Passos e Portas aumentaram os impostos em 4 mil milhões, gostou assim-assim quando baixaram as pensões e os salários, mas cobrar mais cem milhões ao património imobiliário de luxo faz-lhe saltar a tampa: “é um crime”.

Miguel Sousa Tavares, que a casinha em ruinas lá na terra nunca mais vai ser recuperada e que é melhor demitir António Costa. Mas a casinha lá na terra não vai pagar sobretaxa do IMI. Nem a casa de família, pois quem tem essas duas propriedades não é abrangido.

Gomes Ferreira, que os chineses vão deixar de investir e o capital estrangeiro vai fugir. Mas ninguém ensinou ao Gomes Ferreira que a maior parte destas compras de casas não é investimento? (Já reparou que nos canais generalistas de TV só há a explicação carinhosa da posição da direita sobre o assunto e nem para amostra há uma voz que se atreva a discordar desta linha tremendista de Mendes-Sousa Tavares-Gomes Ferreira?)

Paulo Rangel, inocente quanto a questões de economia, transforma a ignorância em atrevimento e também se mostra ofendido por Mariana ter explicado que só a compra da habitação nova é investimento; as outras compras e vendas da mesma casa não são investimento e são irrelevantes para a conta do PIB. É “ideologia”, grita Paulo; é “ciência socialista”, vocifera Paulo; mas é o Eurostat, Paulo. E, se se derem ao trabalho de pensar um bocadinho, tanto Gomes Ferreira como Rangel até conseguem perceber porquê: se Gomes Ferreira vender de manhã a sua casa a Rangel e a recomprar à tarde, para a revender no dia seguinte ao mesmo ou a outro colega e assim sucessivamente, talvez isso os torne muito amigos mas não acrescenta um cêntimo ao PIB, pois não?

Sérgio Sousa Pinto, sabendo do que fala, fica-se pela indignação contra estes “jovens burgueses cripto-comunistas” e ainda contra os “habilidosos pantomimeiros da velha escola” e esta “paródia senil”. Suspeito que escolheu cuidadosamente todas as frases.

José Milhazes, sempre cordial, anuncia que Mariana Mortágua está louca e deve ser internada (“Não se trata de um diagnóstico, mas de um caso clínico… O Conde Ferreira no Porto voltou a receber pacientes). Por delicadeza, só desejo as melhoras a este jornalista.

A brigada neoconservadora, neste caso capitaneada por Helena Matos, Rui Ramos e Paulo Ferreira, garante que a substituição do imposto de selo de 1% por uma sobretaxa de 1% é o princípio da instalação do bolchevismo, oh que vergonha para os pergaminhos da nossa Pátria.

Fernando Sobral, cavalheiro como sempre, anuncia que mergulhámos nas trevas medievais da floresta de Sherwood. No dia seguinte já passou da floresta de Sherwood para “uma versão tropical do regime de Kim-Jon-un”. Suponho que algum dia alguém notará que o jornalismo está a acabar e que, ao primeiro frémito de uma discussão, muitos jornalistas preferem escrever como proto-dirigentes partidários.

O Diabo, portanto. Ou a diaba, o que é muito mais sinistro, porque tem um sorriso mavioso e nos encanta com a sua voz ponderada.

Ora, esta diaba traz-nos duas lições.

A primeira é que enquanto o imposto de selo sobre os patrimónios imobiliários de mais de um milhão existia para fingir, a república estava salva; a partir do momento em que se pondera uma pequena taxa marginal sobre os mesmos patrimónios imobiliários, a democracia colapsou e as forças tenebrosas do Mal ocuparam Portugal, Mariana é Darth Vader e Costa é o Lorde Voldermort.

A segunda é uma lição para a esquerda: se há esta agitação desesperada, com comentadores televisivos a declararem a sua adesão à insurreição que vem (Vai ser como a TSU do Passos Coelho! Vai ser como a queda de Cavaco! Ocupem a ponte!), com o jornalismo económico a marchar como um exército em defesa do investimento dos chineses e franceses – que não afinal não é investimento, mas este é um dos casos em que o diabo não está nos detalhes – tudo por causa de um imposto marginal sobre o património dos milionários, façam o favor de se preparar para quando houver impostos sobre os rendimentos que incluam os dividendos e ganhos de capital e se puderem aumentar as pensões pobres dos nossos pais e avós que trabalharam a vida toda.

No mínimo, na falta da diaba ou mesmo de razões, a velha arma de sempre, uma boa inventona. E depois virá o resto.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 20 de setembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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