You are here

O milagre português ou como produzir campeões sem fazer desporto

E felizmente, acabou. A Telma ficou-se pelo bronze, os da canoagem ficaram presos nas algas, o Évora e a Mamona não saltaram para o pódio, o miúdo (que ninguém conhece) que é campeão europeu de Taekwondo (que ninguém sabe o que é) só ganhou a medalha de lata atribuída por um jornal desportivo português. Por Vasco da Rocha.
"Apesar da nossa dimensão, a exigência mantém-se para todas as modalidades e atletas, principalmente os olímpicos".

Continuamos a ser o país que maltrata os atletas olímpicos pela falta de medalhas, ciclicamente, de quatro em quatro anos, não mostrando qualquer incómodo e revolta com políticos, dirigentes e com o sistema e a política desportiva nacional. E tudo isto porque, de vez em quando, contra todas as probabilidades, genética e economicamente falando, há uns extraterrestres portugueses, que com a mesma falta de condições, conseguem o impensável e chegam ao bronze, à prata e mesmo ao ouro olímpico. E é disto e só disto que queremos saber.

Um país onde o pouco dinheiro que há, público ou privado, vai quase todo para o futebol, e mesmo aí, os que são grandes cá dentro, são pequenos lá fora. Apesar da nossa dimensão, a exigência mantém-se para todas as modalidades e atletas, principalmente os olímpicos. E parece que o pior mesmo é ser qualificado para ir aos jogos, pois ninguém se chateia com os que nem sequer lá vão, pelo menos, não envergonham o país lá fora.

o último governo em funções retirou a educação física do currículo do ensino primário, diminuiu a carga horária do desporto de forma generalizada e precarizou professores de educação física

Um país onde o último governo em funções retirou a educação física do currículo do ensino primário, diminuiu a carga horária do desporto de forma generalizada e precarizou professores de educação física.

Refém de lobbies

Um país onde as escolas não tem pavilhões, ginásios, pistas de atletismo ou piscinas. Muitas vezes, nem sequer as há perto, outras só na cidade vizinha.

Um país onde o modelo desportivo assenta na transição do desporto escolar, que não existe, para o desporto associativo, demarcando-se o Estado das suas funções nesta matéria, mas sem apoiar devidamente os clubes, associações e federações.

Um país onde o Comité Olímpico é a fiel imagem de tudo o resto, refém de lobbies e interesses, sujeito à perpetuação das pessoas de sempre nos cargos do costume, sem qualquer escrutínio.

Um país onde o índice de prática desportiva e de atividade física é tão miserável, que nem com o Pokemon Go melhorou, apesar de termos mais telemóveis do que pessoas.

Um país que investe milhões em centros de alto rendimento para as medalhas dos próximos jogos olímpicos, mas não nem tem dinheiro para investir na base do sistema desportivo.

"Um país que investe milhões em centros de alto rendimento para as medalhas dos próximos jogos olímpicos, mas não tem dinheiro para investir na base do sistema desportivo".

Um país que não tem a noção do que é fazer quilómetros e quilómetros para ir treinar, treinar sozinho, de madrugada, de noite, ao frio e à chuva, ao calor tórrido, antes ou depois do trabalho ou escola, ou ambos, aos domingos e feriados, não comer o que se quer, não sair à noite com os amigos, beber um copo, fumar um cigarro, deixar de estar com a família, pagar do próprio bolso, pedir aos pais ou emprestado, para viagens de autocarro, voos low-cost, para dormir em hostels, para acampar ou poupar ainda mais e viajar no próprio dia, provas internacionais, equipamento topo de gama, treinador, quando, raras vezes, não é voluntário também.

Um país onde não temos os melhores políticos do mundo, nem as melhores empresas, nem nada. Verdade seja dita, tivemos o melhor CEO do mundo, mas a empresa faliu e foi vendida a estrangeiros. Mas nas Olimpíadas, abaixo de bronze é derrota pesada.

De quatro em quatro anos, no meio das ofensas a quem faz do desporto a sua vida, neste ocioso país, parece que se quer falar de política desportiva. Mas afinal, não. À falta de cultura olímpica, à falta de cultura desportiva, vamos continuar a deixar que os nossos políticos e dirigentes desportivos trabalhem para as medalhas como um fim, e não como um meio para a promoção da prática desportiva.

Afinal, disto tudo, ninguém quer saber. Desporto, desporto, é sermos campeões europeus de futebol e toca a assinar  canais desportivos bem pagos que as ligas de futebol já começaram. Está aberto o novo ciclo olímpico do gaming, do mapling, do zapping e do haltere de balcão, para quem gosta de desportos outdoor. Daqui a quatro anos, certamente, haverá mais falhanços para apontar o dedo.

_________________________

Vasco da Rocha é Engenheiro do Ambiente e mestrando em Ciências do Desporto.

Sobre o/a autor(a)

Engenheiro do Ambiente, mestrando em Gestão de Desporto e empresário.
Comentários (1)