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Je suis gay

Um americano, nascido e criado nos EUA, que não gosta de ver 2 homens na rua a beijar-se, que frequenta secretamente sites de engates para gays, entra numa discoteca assumidamente LGBT e mata a tiro meia centena de pessoas. Qual é a dificuldade em perceber que isto foi um crime de ódio homofóbico?

Volto a repetir: Um americano, nascido e criado nos EUA, que não gosta de ver 2 homens na rua a beijarem-se, que frequenta secretamente sites de engates para gays, entra numa discoteca assumidamente LGBT e mata a tiro meia centena de pessoas. O terrorismo do DAESH é aqui o principal problema? A questão central é o fundamentalismo islâmico?

Devem estar a brincar comigo!

Não quero defender fundamentalismo de nenhuma espécie. Aliás desprezo-o! Islâmico, católico, judeu, mormon, seja lá o que for! Nem sequer quero defender o Islão: doutrina que, maioritariamente, ensina à subjugação da mulher e à discriminação de homossexuais pela via do pecado, da culpa e do castigo. Tal como fazem a grande maioria das restantes religiões. Neste aspeto são todas responsáveis pelo ódio e pela violência.

Mas o discurso hegemónico que trata o massacre de Orlando como um espelho do fundamentalismo islâmico tem 2 funções essenciais. A primeira é a legitimação do ódio ao islão, como política internacional mantida há já alguns anos. Permite atacar o Iraque e o Afeganistão, em busca de posições geoestratégicas mais favoráveis, fechar as fronteiras da Europa aos refugiados Sírios, manter o domínio dos poços de petróleo entre as grandes corporações do ocidente! A segunda, a que mais me preocupa neste momento, é a invisibilização da homofobia.

Este processo de mascarar, ocultar o motivo homofóbico central deste ataque é generalizado e automático. Generalizado nos meios de comunicação social, nas redes sociais, nos discursos dos políticos (alguns...). Automático porque foi imediato, quase inato, pavloviano. Como se a tendência para esconder a homofobia gritante do caso esteja já nos genes de todos nós. E está mesmo! Gostamos de pensar em nós próprios como ocidentais, como "tolerantes", como progressistas, como o primeiro mundo, o mundo desenvolvido! E é por isso que aceitar que no coração do primeiro mundo haja espaço para uma barbárie homofóbica custa! E custa muito! E custa tanto que a nossa primeira reação é nega-lo, escondê-lo, irrelevá-lo! Fica melhor falar em fundamentalismo islâmico: passamos a culpa para "outros".

Pela mesma ordem de ideias preferimos não falar da homofobia nem depois de Orlando, nem antes de Orlando. Preferimos ignorar que sair à rua de mão dada com alguém, não é o mesmo para mim, gay, ou para ti, heterossexual. Que sair do armário em Lisboa é diferente de sair do armário em Leiria. Que temos, um dia, de "contar aos nossos pais", coisa que nenhum heterossexual vê necessidade. Que ainda levamos porrada de taxistas por beijarmos alguém do mesmo sexo na cidade do Porto. Que ainda somos espancados na festa do avante, quando apanhados em flagrante. Que ainda temos de enfrentar o olhar incrédulo do médico quando lhe contamos que somos homossexuais.

Tanto mais preferimos ignorar isto tudo, quanto mais leis aprovamos. Casamento, adoção, PMA, maternidade de substituição,... Fizemos tudo isto, a muito custo, com muito suor. Porque raio havemos hoje, depois de tanto progresso, de falar ainda de homofobia?

Não falamos de homofobia. E também não falamos (abertamente...) de todas aquelas figuras publicas que sabemos! Dos deputados homossexuais que não o são para o publico - têm direito à reserva da sua vida pessoal - que engraçado que este argumento só funciona para os homossexuais, pois dos heterossexuais conhecemos os cônjuges, os companheiros, os filhos, os pais, etc... os restantes... têm direito à vida privada! E nem queremos admitir que não é possível ser jogador de futebol e homossexual. Polícia e homossexual? Militar e homossexual?

Somos tão evoluídos, tão modernos que achamos que já nem vale a pena falar muito de homossexualidade. Preferimos achar que se é só um questão de orientação sexual, então somos todos iguais e não há lugar a tratamentos distintos. E ignoramos a realidade: que a infeção por VIH está a explodir entre os homens que têm sexo com homens; que não existe educação sexual dirigida aos nossos adolescentes gays; que o SNS não sabe lidar com nem resolver questões especificas nossas; que o psicólogo lá da escola não sabe responder às perguntais mais importantes quando temos 16 anos e descobrimos o que somos. Se nos custa tanto falar de homofobia, imagine-se então de transfobia. Seriam pelo menos mais 2 artigos!

Caros senhores e senhoras ocidentais, modernos, evoluídos: tudo isto é incómodo. Tudo isto põe em causa o "vosso modo de vida". E por isso negam tudo o que sofremos todos os dias desde que nascemos, negam a homofobia que existe nos mais escondidos recônditos dos vossos seres. E esta negação tem um objetivo: querem-nos iguais a todos os outros (vocês). Normalizados. Conformados. Calados e quietos. E impõem-nos aquilo que nós não somos nem queremos ser: gays e lésbicas respeitáveis, recatados, tímidos e discretos. Pois calem a homofobia do assassino mas não calem a nossa essência: somos bichas, paneleiros, florzinhas, maricas, camionas, fressureiras, travecas, sapatonas, invertidas, rabetas. É por isto que nos matam às dezenas numa discoteca!

Este é um texto de mágoa e de revolta. Mas eu não vou explicar estes sentimentos. Vocês até podem senti-los hoje após Orlando. Nós sentimo-los todos os dias das nossas vidas.

Querem ser solidários? Encham os vossos facebooks de "Je suis gay", tal como fizeram com o "Je suis Charlie". Gostava de ver.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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