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Pensar o atentado ao Charlie Hebdo, por Slavoj Zizek

Quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso. Artigo de Slavoj Zizek, publicado em New Statesman.
Foto de Matthew Tsimitak. Na foto: Slavoj Zizek, Alexis Tsipras e Oliver Stone.

É agora – quando estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo – o momento certo para encontrar coragem para pensar. Agora, e não depois, quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os proponentes da sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor do momento com o ato de pensar. Pensar quando o rescaldo dos eventos esfriar não gera uma verdade mais balanceada, na verdade normaliza a situação de forma a nos permitir evitar as verdades mais afiadas.

Pensar significa ir além do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e culminaram no espetáculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, de grandes nomes políticos à volta do mundo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas – a imagem mais bem acabada de falsidade hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário uma grande caricatura a gozar de forma brutal e grosseira, com cartoons de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais a abraçar-se e beijar-se intensamente enquanto afiam facas por trás de suas costas.

Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência da nossa liberdade, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta  (no estilo de “Charlie Hebdo estava todavia a provocar e humilhar os muçulmanos demasiado”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação norte-americana no Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e no entanto não praticam atentados a bomba ou chacinas), etc. etc. O problema com tal evocação do complexo pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazi com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças.

Nada disso é suficiente – temos que pensar adiante. E o pensar de que falo não tem absolutamente nada a ver com uma relativização fácil do crime (“quem somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar atos como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo patológico de tantos esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se culpados pela islamofobia. Para estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islão é destroçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte etc.

O resultado de tal postura só pode ser esse: o quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham no seu sentimento de culpa, mais são acusados por fundamentalistas muçulmanos de serem hipócritas tentando ocultar o seu ódio ao Islão. Esta constelação reproduz perfeitamente o paradoxo do superego: o quanto mais obedece o que o outro exige, mais culpa sentirá. É como se o quanto mais tolerar o Islão, tanto mais forte será a sua pressão contra si…

É por isso que também me parecem insuficientes os pedidos de moderação na linha da alegação de Simon Jenkins (no The Guardian de 7 de janeiro) de que a nossa tarefa é “não exagerar a reação, não sobre-publicizar o impacto do acontecimento. É tratar cada evento como um acidente passageiro do horror” – o atentado ao Charlie Hebdo não foi um mero “acidente passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda religiosa e política precisa e foi como tal claramente parte de um padrão muito mais amplo. É claro que não devemos exaltar-nos – se por isso compreendermos não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos implacavelmente analisar este padrão.

O que é muito mais necessário que a demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heroicos é um desmascaramento desse mito demoníaco. Muito tempo atrás, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental se estava a mover na direção do “último homem”, uma criatura apática com nenhuma grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, não assume nenhum risco, procurando apenas o conforto e a segurança, uma expressão de tolerância com os outros: “Um pouquinho de veneno de tempos em tempos: que garante sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para uma morte agradável. Tem os seus pequenos prazeres de dia, e os seus pequenos prazeres de noite, mas tem um zelo pela saúde. ‘Descobrimos a felicidade,’ dizem os últimos homens, e piscam.”

Pode efetivamente parecer que a cisão entre o Primeiro Mundo permissivo e a reação fundamentalista a ele passa mais ou menos nas linhas da oposição entre levar uma longa e gratificante vida cheia de riquezas materiais e culturais, e dedicar a sua vida a alguma Causa transcendente. Não é esse o antagonismo entre o que Nietzsche denominava niilismo “passivo” e “ativo”? Nós no ocidente somos os “últimos homens” nietzschianos, imersos em prazeres quotidianos banais, enquanto os radicais muçulmanos estão prontos a arriscar tudo, comprometidos com a luta até a sua própria autodestruição. O poema “The Second Comming” [O segundo advento], de William Butler Yeats parece perfeitamente resumir o nosso predicamento atual: “Os melhores carecem de toda a convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada”. Esta é uma excelente descrição da atual cisão entre liberais anêmicos e fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” não são mais capazes de se empenhar inteiramente, enquanto “os piores” se empenham em fanatismo racista, religioso e machista.

No entanto, será que os fundamentalistas religiosos realmente se encaixam nessa descrição? O que obviamente lhes carece é um elemento que é fácil identificar em todos os autênticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amistas nos EUA: a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença perante o modo de vida dos não-crentes. Se os ditos fundamentalistas de hoje realmente acreditam que encontraram o seu caminho à Verdade, por que deveriam se sentir ameaçados por não-crentes, por que deveriam invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, dificilmente o condena. Só benevolentemente nota que a busca do hedonista pela felicidade é auto-derrotante. Em contraste com os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas terroristas são profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos não-crentes. Tem-se a sensação de que, ao lutar contra o outro pecador, eles estão lutando contra a sua própria tentação.

É aqui que o diagnóstico de Yeats escapa ao atual predicamento: a intensidade apaixonada dos terroristas evidencia uma falta de verdadeira convicção. O quão frágil a crença de um muçulmano tem de ser para ele se sentir ameaçado por uma caricatura besta em um semanário satírico? O terror islâmico fundamentalista não é fundado na convicção dos terroristas da sua superioridade e no seu desejo de salvaguardar a sua identidade cultural-religiosa da investida da civilização global consumista.

O problema com fundamentalistas não é que os consideramos inferiores a nós, mas sim que eles próprios secretamente se consideram inferiores. É por isso que as nossas reafirmações politicamente corretas condescendentes de que não sentimos superioridade alguma perante eles só os tornam mais furiosos e alimenta o seu ressentimento. O problema não é a diferença cultural (o seu esforço para preservar a sua identidade), mas o facto inverso de que os fundamentalistas já são como nós, que eles secretamente já internalizaram as nossas normas e se medem a partir delas. Paradoxalmente, o que os fundamentalistas verdadeiramente carecem é precisamente uma dose daquela convicção verdadeiramente “racista” da sua própria superioridade.

As recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam o velho insight benjaminiano de que “toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução fracassada”: a ascensão do fascismo é a falência da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que havia potencial revolucionário, descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar.

E o mesmo não vale para o dito “islamo-fascismo” de hoje? A ascensão do islamismo radical não é exatamente correlativa à desaparição da esquerda secular nos países muçulmanos? Quando, lá na primavera de 2009, os Talibans tomaram o vale do Swat no Paquistão, o New York Times publicou que eles arquitetaram uma “revolta de classe que explora profundas fissuras entre um pequeno grupo de proprietários abastados e os seus inquilinos sem terra”. Se, no entanto, ao “tirar vantagem” da condição dos camponeses, os Talibans estão a “chamar à atenção para os riscos do Paquistão, que permanece em grande parte feudal”, o que garante que os democratas liberais no Paquistão, bem como os EUA,  também não “tirem vantagem” dessa condição e procurem ajudar os camponeses sem terra? A triste implicação deste facto é que as forças feudais no Paquistão são os “aliados naturais” da democracia liberal…

Mas como ficam então os valores fundamentais do liberalismo  (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo é que o próprio liberalismo não é forte o suficiente para salvá-los contra a investida fundamentalista. O fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à própria sorte, o liberalismo lentamente se minará a si próprio – a única coisa que pode salvar os seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sobre os seus pés.

Pensar os assassinatos de Paris significa abrir mão da auto-satisfação presunçosa de um liberal permissivo e aceitar que o conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é essencialmente um falso conflito – um ciclo vicioso de dois polos gerando e pressupondo um ao outro. O que Max Horkheimer havia dito sobre o Fascismo e o capitalismo já nos anos 1930 – que aqueles que não estiverem dispostos a falar criticamente sobre o capitalismo devem se calar sobre o fascismo – deve ser aplicada também ao fundamentalismo de hoje: quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso.

Artigo publicado no Blog da Boitempo.

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