You are here

Servos de Marte

“Sirvamos hoje a deusa Minerva, por melhor servir a Marte” – é com este apelo que termina o secular hino do Colégio Militar da Luz. Nesta instituição “pública”, cada aluno é um número, e os números falam por si: 12.000€ desembolsados anualmente pelo Estado, por estudante (o triplo do custo de um aluno numa escola pública), sendo que a maior parte acaba por não ingressar nas Forças Armadas. Hipódromo, piscina e armamento estão incluídos nesta fatura, mas só deles usufrui quem puder suportar elevadas mensalidades; a elitização acentua-se ainda com a discricionariedade dos órgãos diretivos na seleção dos estudantes: um artigo elucidativo de Catarina Rodrigues para o Observador1 dá conta de exclusões e subtrações de alunos em função da sua orientação sexual, das dificuldades de aprendizagem e de obediência às condutas. Também as demonstrações de afeto são reprimidas, mas as ofensas físicas, sobretudo por parte dos graduados, encarregues de educar os mais novos, ocorrem com alguma frequência.

Bastaria invocar estes factos para negar ao Colégio Militar a componente inclusiva e igualitária que deveria estar presente num verdadeiro serviço público, tornando-se inexplicável um tão grande investimento dos contribuintes. Mas se é fácil concordarmos quanto à falta de utilidade pública do Colégio, o repúdio para com os métodos educativos da instituição já não é tão consensual na nossa sociedade.

É comum confundirmos educação com disciplina, mas os dois conceitos não estão interligados – a educação (que podemos definir como o processo de assimilação de conhecimentos e competências) não tem de pressupor a obediência a um conjunto de regras rígidas e autoritárias. De facto, Bertrand Russell2 distinguia três escolas de pensamento: as defensoras da total libertação das crianças, ainda que estas pudessem adotar maus comportamentos (filosofia de Rousseau); as apologistas da submissão plena aos comandos da autoridade, por muito boas condutas que os educandos praticassem; e as que admitiam a regulação apenas enquanto dissuasora das más ações, a “liberdade condicionada”. Russell descartava as duas primeiras opções – a primeira por impossibilitar um contexto propício à interiorização de conhecimentos e valores cívicos, que a criança nunca adquiriria sozinha, e a segunda por produzir efeitos muito nefastos na formação da personalidade e caráter do jovem. Com efeito, uma educação autoritária pode gerar no oprimido sentimentos de raiva, revolta e intolerância que acabam por se repercutir de várias formas – através, por exemplo, de atitudes rebeldes ou agressivas para com outros, fenómeno que presenciamos na praxe, em algumas ex-vítimas de bullying ou violação, em jovens que saem de colégios austeros, ou mesmo em pais cuja educação se pautou pela mesma rigidez com que agora educam. Também são apontadas como consequências a baixa autoestima, proveniente da falta de autonomia, a perda de qualidades criativas e de espírito crítico, resultante da conformação com a autoridade, e até dificuldades na adaptação a contextos diferentes (fora do registo corporativo). Para piorar, o enaltecimento de práticas e valores bélicos (mas com o divertido “repúdio pela violência” que consta do Código de Honra destes colégios) forma nas crianças uma ideia positiva e deturpada da guerra – enquanto espaço supremo de afirmação da sua bravura, virilidade e patriotismo, quando na verdade a guerra desumaniza e o “serviço à Pátria” se pode expressar de muitas (e construtivas) formas.

A rigidez da conduta militar é muitas vezes apontada como solução milagrosa para jovens com problemas comportamentais, mas na prática revela-se pouco eficaz: quer pelo próprio processo de seleção/recrutamento das instituições, que por norma (e ironicamente) excluem os jovens mais desafiantes, quer também pela pura desadequação da “terapia”. Segundo projeções da Aspen Educational Group, as taxas de reincidência de problemas comportamentais em jovens que participaram em “boot camps” rondam os 94%3, sendo que os psicólogos são unânimes na recusa dessa solução enquanto alternativa aos programas terapêuticos. Para a Aspen, a disciplina não ataca as perturbações emocionais que estão na raiz dos comportamentos instáveis dos jovens, podendo produzir efeitos perversos mais tarde, sobretudo quando fora da supervisão escolar.

Russell afirmava também que os modelos educativos variavam consoante a conceção finalística da existência humana (como a vida eterna ou a entrega à Pátria); segundo ele, pessoas com diferentes posições quanto ao propósito da vida e do indivíduo diferiam na opção educativa. Então eu pergunto: que jovens queremos formar, e para quê? Queremos educá-los nos princípios inclusivos, tolerantes e pacifistas da nossa Constituição, ou preferimos esse autoritarismo militarizado que traz à memória o Estado Novo? Queremos programar crianças para um mundo duro, ou escolhemos ensiná-las a torná-lo mais humano? Será cada pessoa uma parte de um corpo cujos desígnios superiores a reprimem, ou deverá ela ser um fim? Entre a obediência e a criatividade, entre a submissão e a autonomização, entre uma espingarda ao ombro e um gesto afetuoso, a escolha deverá ser sempre aquela que fará do mundo um lugar mais livre.


2Filósofo e matemático distinguido com o Nobel da Literatura em 1950, falecendo vinte anos mais tarde. Prestou um valioso contributo para o pensamento educativo contemporâneo.

Sobre o/a autor(a)

Estudante de Direito
Comentários (4)