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Diário de uma ida ao Centro Nacional de Pensões

É uma descida aos infernos. Há muito menos funcionários a atender, e há mais pessoas a reformarem-se – mesmo com penalizações, é melhor que simplesmente ficar desempregado sem qualquer subsídio. O que se segue é o relato da minha extenuante jornada nesta sexta-feira, na dupla condição de pensionista por invalidez parcial devido à Doença de Parkinson, e jornalista do Esquerda.net. Por Luis Leiria.
A bicha em Enrecampos às 9h 18, para tirar uma senha de atendimento. Todas as fotos são de Luis Leiria
A bicha em Enrecampos às 9h 18, para tirar uma senha de atendimento. Todas as fotos são de Luis Leiria

9h18: Esta é a bicha com que me deparo quando chego a Entrecampos, Lisboa. Dá a volta ao quarteirão. E isto é apenas para conseguir uma senha que permita ser atendido no Centro Nacional de Pensões, no dia em que se assinalam os 30 anos da adesão de Portugal à então CEE. Antes de eu ter chegado, um senhor teve um desmaio quando anteviu a espera que ia ter de suportar. Ao cair, bateu com a cabeça. O INEM levou-o para as urgências. Durante o dia, ouvi vários relatos do episódio. Assustador.

9h 30: Devia ter chegado às 7 da manhã... Mesmo assim ainda tive sorte, “só” fiquei com 105 pessoas para informações à minha frente... Para entregar documentos, já não há senhas.

105 pessoas à frente do repórter do Esquerda.net

Um funcionário, a impotência estampada na cara, explica que há menos de metade do pessoal a atender. Mas o governo diz que há funcionários a mais.

"O senhor não viu que despediram gente da Segurança Social"? Eu sei, até conheço alguns deles... Por outro lado, prossegue, "não há emprego, as pessoas correm às reformas antecipadas".

Mas isso, dirá Passos Coelho, deve ser um mito urbano...

Sala apinhada, já não há lugar nem para se sentar

10h20: Foram atendidas 16 pessoas da letra A. Havia aqui normalmente 21 funcionários a atender. Agora, a cave está fechada. Há umas 7 pessoas a atender. Vai ser "O dia mais longo”. Um funcionário vai à sala de espera, apinhada de gente, e pede que as pessoas falem mais baixo, porque o barulho está a interferir com o trabalho deles. Muita gente obedece. Mas, numa sala onde não há sequer lugar sentado para todos, se a pessoa não bater um papo, o que mais faz para passar o tempo? Eu sei, leva um livro. Foi o que fiz.

Full scan no computador, é a recomendação.

10h 40: Diz o quadro das senhas que é preciso fazer um full scan no computador. Afinal deve ser essa a explicação da demora, não a falta de pessoal. É a prova de que isto é um mito urbano...

11h18: A minha fila, a A, vai no 26. Tenho 79 à minha frente. Por coincidência, a rapariga que tem o número 105 protagonizou comigo um ato de rebeldia. Sentamo-nos na escada da cave fechada, passando a corrente. O segurança veio dizer-nos que não podíamos estar ali. Mas não há outros lugares. O homem acabou por desistir. A rapariga está ali a apoiar a mãe.

Duas horas depois, só 26 pessoas atendidas.

11h 30: Sempre tive direito, como trabalhador, a um recibo de salário. Quanto é o valor bruto, que descontos foram feitos, quais os seus valores, quanto é pago no final, etc. Tudo registado para não haver enganos. Mas o pensionista não tem nada disso. Sabe pelo extrato da conta bancária quanto foi pago. Mais nada.

Se há alterações, não tem outro remédio senão vir aqui. Antes, tentei o call center, mas as informações são imprecisas. Já perguntei porque não se pode ter acesso a tudo isto pela segurança social direta. Olharam para mim como se fosse maluco.

Foto tirada da escada onde eu não devia estar...

Por enquanto, a Doença de Parkinson ainda me deixa fazer estas deslocações sem grandes problemas. Até quando?

12h 30: Arrisco dar um salto ao hospital dos Capuchos porque tinha combinado com a minha médica responder a uns questionários para ajudar a validar escalas para a avaliação da Doença de Parkinson em língua portuguesa. A Dra. Ana Calado é uma das pessoas mais importantes da minha vida atual, por razões óbvias, e por isso decidi arriscar. Além disso, acho que é meu dever colaborar no que posso com a luta contra a Doença, contra o preconceito de que são vítima os pacientes, enfim, tudo o que esteja ao meu alcance para contribuir com o meu grãozinho para se chegar à cura.

O Hospital dos Capuchos, onde acompanho a Doença de Parkinson. Excelentes médicos.

Reconheço que tenho interesse nisso. Claro! Mas digo-vos que muita gente não assume que tem a doença por medo do preconceito. Eu mesmo vejo a reação de algumas pessoas espantadas quando lhes digo que tenho a DP. Olham-me como se eu fosse um morto-vivo. Não sou, e vou vender cara qualquer piora.

14h20: Regresso a Entrecampos e mal posso acreditar. Ainda vai no número 46! Sessenta pessoas até eu ser atendido! Não vai dar! Pergunto ao segurança o que acontece às pessoas que não puderem ser atendidas hoje. Diz que todas serão. Nem que seja às 19h. Mas adverte-me que às 17h fecham as portas e ninguém mais entra, mesmo que tenha senha. Acho que ele está a ser otimista, mas a ver vamos.

Às 17h, a sala já está quase vazia.

17h: O segurança tinha razão. Quando as portas se fecham, já há muitos lugares livres, a sala desanuviou. Assim fica mais fácil conversar e conhecer os dramas da sra. que descontou a maior parte da sua carreira contributiva em França, do pescador que deu formação de pesca em Benguela e os descontos não apareceram, da senhora que ia pedir a reforma aos 65 quando o a idade legal subiu para os 66, e acha que quando puder pedir de novo, a idade legal vai subir outra vez, para os 67.

Apesar do dia cansativo, o atendimento foi muito bom.

Fotografo furtivamente a sala onde é feito o atendimento e o segurança, atento, diz-me que não posso fotografar. Decido não criar caso, até porque já tenho uma foto.

17h30: Sou finalmente chamado, atendido e muito bem tratado. Nisso, não tenho que me queixar. As profissionais que já me atenderam (nesta e noutras vezes) em Entrecampos são 5 estrelas. Foi um dia inteiro de espera, mas saio com a esperança de que a coisa se vai resolver mais rapidamente do que eu esperava. Será?

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Jornalista do Esquerda.net
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