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A preguiça de Nuno Crato
Nuno Crato chegou ao governo com as palavras "rigor" e "exigência" na ponta da língua, mas revelou-se o ministro da Educação mais preguiçoso que tivemos o azar de conhecer. Em todos os grandes desafios que se colocam à escola, Crato escolheu sempre a saída mais fácil... e bem sabemos como o facilitismo compromete o progresso.
A maior preguiça da visão de Nuno Crato é desistir de muitas crianças, a começar pelas mais pobres que representam nove em cada dez que chumbam. Como poderíamos não ter pressa em acabar com isto?
Começou por atalhar a trabalheira de ouvir, estudar e negociar a (contra)revolução que em poucos meses revirou o paradigma de avaliação que existia desde a Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986. Esse caminho, centrado na avaliação contínua, foi durante décadas responsável pela democratização e modernização do ensino em Portugal.
Com a preguiça histórica própria dos reacionários, Crato foi buscar respostas ao passado. E assim reintroduziu o exame da 4.ª classe, duplicou a carga horária de Português e Matemática e lá redescobriu o ensino profissional como remédio instantâneo para o insucesso escolar. É justo perguntar a motivação de tantas mudanças: melhorar a exigência do ensino? Acompanhar os países com melhores padrões de sucesso escolar? Não. E não. Ficamos, aliás, orgulhosamente sós no panorama europeu.
Mas havia uma coerência em todas as imposições de Crato que agora começaram a ser revogadas. Em conjunto, elas formam uma ideia de escola profundamente conservadora e seletiva. É o fim dessa ideia que a direita chora quando lamenta a revogação de um par de exames.
Comecemos então por aí. Os exames são o instrumento mais limitado, mais barato e mais fácil de "avaliar" alunos. Através deles o sistema não tem de se preocupar com minudências como o contexto social e económico das crianças, o nível de escolaridade das famílias, o acesso a apoios externos ou, em última instância, qualquer coisa que não possa ser contabilizada em escolha múltipla.
Mas o laxismo tem consequências. Os exames são os eucaliptos do sistema educativo, uma vez plantados levam a que todo o sistema se mobilize exclusivamente para eles. Um bom exemplo deste estreitamento é o primeiro ciclo, em que os professores só começam a ensinar estudo do meio depois de estarem feitos os exames de Português e Matemática. Em linguagem estudantil, só interessa o que "sai" no exame e o resto é paisagem... ainda que o resto seja História ou Ciências.
Quer isto dizer que sem exames os alunos deixam de ser avaliados? Não. Continuam a ser avaliados pelos seus professores. Como é que garantimos a exigência dessa avaliação? Através da aferição. As aferições são provas que permitem diagnosticar e melhorar currículos, programas e aprendizagens.
Qual será o regime mais facilitista? A aferição que permite encontrar e corrigir as dificuldades da escola, ou os exames que são feitos para excluir os alunos sem perceber o que falhou?
Se os exames não dão condições de ensino aos professores, inteligência aos alunos ou qualidade às escolas, para que servem? Para fazer rankings. O que nos leva a perguntar se a escola se pode mobilizar em simultâneo para um campeonato de resultados e para a qualidade de ensino de todos os alunos.
Uma escola centrada nos exames tende a motivar os que têm melhores resultados e a abandonar ou condenar os outros ao ensino profissional. A visão da educação como um desporto de alta competição é altamente seletiva e socialmente violenta.
Uma das maiores perversões de Crato foi reforçar esta desigualdade oferecendo professores de apoio como prémio para as escolas que estavam no topo do ranking, proibindo estas contratações para as que tinham alunos com maiores necessidades educativas.
A maior preguiça da visão de Nuno Crato é desistir de muitas crianças, a começar pelas mais pobres que representam nove em cada dez que chumbam. Como poderíamos não ter pressa em acabar com isto?
Artigo publicado no “Diário de Notícias” em 14 de fevereiro de 2016
Comments
Boa tarde,
Boa tarde,
Sou de esquerda, sempre votei no Bloco. Começo assim para evitar qualquer equivoco.
Não concordo nem com as pressas nem com o fim dos exames. Acho, no entanto, que se devia tirar o excesso de formalismo que existia.
Na minha escola os exames não eram encarados como um "fim em si", eram tão só mais um instrumento, e que por sinal estava a dar resultados positivos, as aprendizagens dos alunos ficaram mais consistentes e os verificou-se que melhoraram o seu desempenho.
A minha escola não está situada numa zona privilegiada, somos TEIP e durante vários anos fomos o agrupamento com mais alunos com ASE.
Achar que as provas de aferição vão fazer alguma diferença é não conhecer a realidade do nosso sistema de ensino.
Por fim gostaria de a convidar a visitar o meu agrupamento.
Subscrevo um artigo claro e
Subscrevo um artigo claro e bem esgalhado, não pelas suas qualidades literárias, mas pela qualidade da argumentação. Gostei também do comentário do Luís, franco e aberto, mas permito-me perguntar-lhe se, independentemente dos exames estarem a produzir um bom resultado, eles não são redutores na sua abrangência? Isto é, onde ficam o trabalho do corpo, o corpo na nossa existência, na nossa sociabilidade? Onde fica o lugar das artes, não porque tenhamos todos de nos tornar artistas, mas porque isso é uma componente fundamental da nossa aprendizagem da vida social e humana? Não há contradição entre o artigo da Mariana e o comentário do Luís, mas "pesco" uma expressão da Mariana bem ilustrativa, a ideia de que "os exames são os eucaliptos do sistema educativo". Posso entender que, em determinadas situações educativas (e fujo à ideia de contextos propositadamente) a marca de um momento de avaliação possa ter um valor educativo, mas a sua imposição, ademais restrita a uns saberes em detrimento de outros, não só seca todo o sentido do trabalho educativo enquanto processo como compromete a relevância de outros saberes para além daqueles que são avaliados.
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